Nono dia

Nov 09, 2008 22:42

Passei o dia todo a não fazer nada de jeito. Desde arrumar o quarto, a ver séries, pintar as unhas, ver mais televisão, cozinhar... É que não fiz mesmo nada de jeito até ter percebido que eram 9 e tal da noite e eu ainda não tinha escrito nada! Felizmente consegui escrever as palavras todas que tinha em falta e mais umas quantas. A contagem vai em 15.123.

Uma moça das cozinhas, de longos cabelos castanhos e olhos de avelã, chamou-os para o almoço, convidando-os a seguirem-na até ao Salão. Goodwin recolheu as flechas deixadas ao acaso no chão, guardou as armas e entregou as montadas aos moços da estrebaria, correndo depois atrás dos outros três arqueiros, que já entravam no Castelo.
Enquanto comiam o faisão e o arroz de castanhas, um bobo vestido de cores garridas contava anedotas e fazia malabarismo. Benedita bebia do seu copo de vinho quando encontrou o olhar de Goodwin preso no seu e sorriu-lhe abertamente. Goodwin gostaria de poder atravessar o Salão e aperta-la num abraço, sentir-lhe o cheiro doce e beijar-lhe os lábios rosados. Sorriu-lhe de volta e voltou-se para Eubi Lightfist, que comia rapida e ferozmente, entre ele e Leandro.
- Como é o sítio onde vive, Eubi Lightfist? - perguntou Goodwin, tentando saber o que esperar do Condado dos Duendes quando lá fosse na demanda em que fora enviado.
O duende fez alguns ruidos, encolheu os ombros e alcançou uma outra perna de faisão, levando-a imediatamente à boca com a mão. Goodwin observou-o a comer daquela maneira voraz, questionando-se se a gastronomia dos duendes seria tão inferior à dos humanos e se todos os duendes comiam tanto quanto o ruivo que se sentava ao seu lado, com as pernas a abanar, por não chegarem ao chão. Eubi Lightfist bebeu a caneca de cerveja de um só trago e largou o osso do faisão no prato.
- O que foi? Nunca tinhas visto um duende? - perguntou Eubi Lightfist, procurando na longa mesa uma qualquer outra coisa para atacar.
Não, Goodwin nunca tinha visto um duende. Já tinha visto alguns elfos, perto da muralha, por vezes na floresta perto da sua casa, e avistara um ou dois no Castelo. Já tinha visto fadas, mesmo antes da batalha, quando uma ou outra levava consigo doces aos palácios espalhados pelo reino. Mas as outras criaturas eram para si um mistério. Nunca se afastara muito da sua casa perto do rio, e não havia qualquer razão para qualquer ser vivo, humano ou não, lá passar.
- Nunca te disseram que olhar dessa forma é falta de educação? - Eubi Lightfist parecia seriamente importunado. - E ainda dizem que os duendes é que não sabem educar os filhos...
- Não, não, senhor Eubi Lightfist. Desculpe-me. Simplesmente questionava-me como seria o sítio onde vive.
- Ora, é uma casa, como é que havia de ser? - comeu rapidamente algumas garfadas de arroz de castanhas.
- Pensava que os duendes viviam dentro de montanhas... Em grutas ou assim - murmurou Goodwin.
Eubi Lightfist olhou Goodwin com o sobrolho levantado, sem parar de comer até limpar completamente o prato. Depois bebeu novamente a caneca de cerveja que já fora reposta por uma moça, e olhou o jovem ao seu lado.
- E daí? Por viver numa gruta não quer dizer que não more numa casa - respondeu. - Porque fazes tantas perguntas, rapaz?
Goodwin disfarçou um momento de hesitação levando o copo de vinho aos lábios, sentindo-lhe o calor e o sabor doce e forte.
- Não é normal a guarda do Rei passar pelos quatro condados? Gostava de estar familiar com o terreno antes de lá chegar, apenas isso.
O duende olhou-o desconfiado. Uma moça retirava-lhe o prato da frente cuidadosamente, substituindo-o por um outro, limpo, para comer a sobremesa. Goodwin tossiu e desviou o olhar, esperando que a chegada dos vários doces e bolos tradicionais fossem o suficiente para distrair o duende desconfiado. Eubi Lighfist atirou-se rapidamente ao pudim de ovos e às fatias douradas, deixando Goodwin observar Benedita durante o resto da refeição.
O Rei Aemilius dissera-lhe que poderia partir na sua demanda assim que a sua perna tivesse recuperado dos ferimentos da batalha, o que Goodwin confirmara nessa manhã. Preparava-se para partir nessa mesma noite, depois de estar com Benedita uma última vez.
Uma moça de cabelos curtos e pele morena recolheu os pratos dos cavaleiros enquanto uma outra lhes enchia os copos e canecas. O Príncipe Edmundo tinha sido convidado a tocar flauta para toda a corte e, embora ele tivesse tentado escapar, estava agora sentado no centro do salão, com a irmã, a Princesa Bianca, no chão ao seu lado.
O Príncipe Edmundo era bastante invulgar. Tinha cabelos negros cor de corvo, olhos púrpura tão brilhantes que pareciam pedras preciosas, nariz adunco e pele limpa. Parecia uma criança que crescera demasiado rápido, tendo ainda algumas feições infantis num corpo de homem adulto. Era um interessado pela música e pelas ciências, era estudioso e sábio. Não gostava de justas nem de batalhas, recusava-se a pegar em armas e, em vez disso, passava horas a fio na biblioteca do palácio, estudando livros antigos. O Rei Aemilius, que sempre esperara ter um filho com quem partilhar a paixão pela caça, por vezes perdia a paciência com o Príncipe Edmundo, quando ele começava a falar das coisas que os humanos ainda não compreendiam e do que existia para além do mundo. A Princesa Bianca achava que o irmão nunca iria casar e, se não fossem os dotes musicais do irmão, que eram o acompanhamento perfeito para a sua voz, passaria dias sem falar com o irmão. A Princesa Benedita, porém, adorava o irmão. Contara a Goodwin as horas que passava a ouvi-lo falar do mundo, das estrelas, da vida, da morte. O Príncipe Edmundo e a Princesa Benedita tinham sido chegados desde a infância, e a idade não mudara nada.
O jovem Príncipe tocou uma melodia rápida e complicada, que a irmã seguiu meia fora de tempo, quase que correndo atrás dele, demonstrando grande perícia e conhecimento da música e do instrumento. Alguns membros da corte começaram a deixar o Salão, partindo para as suas tarefas, e Goodwin seguiu-os, com um piscar de olho a Benedita, não ficando para ouvir a canção infantil que Edmundo tocou depois, troçando da irmã.
O Castelo ainda estava vazio, pelo que Goodwin percorreu rapidamente os corredores, atravessou o jardim interior e entrou na Casa do Exército. Era um anexo ao Castelo, tão parte da estrutura principal que apenas aqueles que o conheciam sabiam que fora construído muito depois do Castelo, quando as tropas se tornaram demasiadas para alojar no castelo. A Casa do Exército era pequena e escura, repleta de quartos escuros, de camas duplas. Era bastante acolhedor, quando comparado com as tendas em que os guardas dormiam em viagem ou numa batalha, mas depois de se ter entrado nos aposentos reais, os quartos que lhes eram atribuídos não pareciam sequer estar ao nível das moças da cozinha.
Goodwin procurou o que lhe pertencia, juntando tudo numa pequena trouxa que deixou em cima da cama. Precisava de comunicar a Lorde Fabião que estava de partida, pedir pão e queijo nas cozinhas, preparar Brunos para a jornada e falar com o Rei Aemilius e a Raiana Gaiana.
Foi primeiro à estrebaria, que era certamente o local menos atarefado àquela hora. Era amplo e cheirava a feno molhado, misturando com o cheiro estranhamente familiar a cavalo e a terra. O chão estava coberto de feno e um ou outro moço de estrebaria dormitava num fardo, com o chapéu sobre a cara. Quando Goodwin abriu a pesada porta, deixando o sol entrar, vários cavalos relincharam, deixando todos os moços em alerta e dispostos a ajudar quem quer que fosse que tinha interrompido a sua sesta.
- Preciso de Brunos pronto para partir de madrugada - informou a Pedro, o moço da estrebaria que geralmente preparava a montada de Goodwin. - Vamos numa jornada longa, não sabemos onde vamos nem por que caminhos lá vamos chegar.
O rapaz acenou com a cabeça, fazendo como que uma vénia.
- O que achas que lhe devo alimentar enquanto estiver fora? - perguntou Goodwin, sabendo o quanto o rapaz gostava de estar envolvido naqueles assuntos.
- Nã’ sei, senhor. Talvez erva. Vegetais, se conseguir. Nã’ deixe-o comer de sua comida ou vai ficar demasiade cheio p’ra conseguir ir grandes distâncias.
Goodwin assentiu, procurando Brunos na semi escuridão da estrebaria. Estava na terceira qualquercoisa, descansado no feno. Ergueu-se assim que ouvir Goodwin aproximar-se a cumprimentou-o com um relincho. O jovem afagou-lhe o pescoço e levantou-lhe uma das patas, observando os cascos.
- Consegues arranjar-me uns destes ainda hoje? - perguntou, mostrando a Pedro os cascos que precisavam de substituição.
- Si’, senhor - respondeu prontamente. - Me’ pai faze-os. Vou lá eu mesmo buscar-os.
Goodwin bateu-lhe ao de leve no ombro e prometeu-lhe uma moeda de estanho se conseguisse tudo o que lhe pedira e se lhe entregasse o cavalo antes do nascer do sol. Pedro agradeceu e concordou, partindo de imediato, em corrida, para a aldeia.
Voltou então ao Castelo. Ao passar a fonte interior encontrou Lorde Fabião, que caminhava ao lado de uma jovem da rainha, de longos cabelos e nariz bicudo como um pássaro.
- Lorde Fabião? - chamou Goodwin, não sabendo ao certo se devia interromper.
- Goodwin! Meu jovem! - Lorde Fabião cumprimentou-o com uma mão forte e pesada. - Estavamos mesmo a falar de ti, não estavamos Lady Cecilia? Sabes, Goodwin, é que Lady Cecilia é uma das donzelas da Rainha e ouviu, entre esta e aquela conversa, que tu estavas de partida. E eu disse-lhe que era impossível que partisses sem me dizeres nada! Para além de que essa perna ainda não recuperou, pois não? Bem, e iamos nós, eu e Lady Cecilia, a discutir isto quando te encontramos aqui. Coincidência? Quer-me parecer que não. Então, Goodwin, esclarece-nos, a mim e a Lady Cecilia, esta dúvida: estás de partida?
- Para falar a verdade, Lorde Fabião, era mesmo por isso que eu vinha à sua procura - torceu as mãos e olhou para baixo. - O Rei Aemilius e a Rainha Gaiana decidiram enviar-me numa jornada só minha, para que eu possa ganhar sabedoria.
Lady Cecilia sorriu-lhe cordialmente, observando a reacção do acompanhante pelo canto do olho. A expressão de Lorde Fabião mudou de surpresa para descontentamento, passando seguidamente para algo que Goodwin não conseguiu completamente entender.
- Vê, Lady Cecilia, aqui o jovem Goodwin não tenciona deixar a corte sem me informar! Ah! - deu uma gargalhada que ficou suspensa no ar por um segundo, antes de se dissipar desconfortavelmente. - E então, meu rapaz, para onde te leva essa jornada?
Goodwin não sabia exactamente o que deveria responder ou, mais correctamente, não sabia o que estava autorizado a responder.
- Oh, aqui e ali - decidiu-se a insinuar. - Vou à procura de conhecimento, Lorde Fabião, e ainda não sei onde ele se esconde.
Lorde Fabião riu-se e acarinhou a mão de Lady Cecilia, que se encaixava perfeitamente na curva do seu braço.
- Lady Cecilia, Lady Cecilia... Já viu isto? Percorro o reino à procura dos melhores guardas para o Rei Aemilius e para a Rainha Gaiana. E o que é que acontece? Transformam-nos em poetas e enviam-nos em demandas loucas e incertas.
Ainda a sorrir e a afagar a mão de Lady Cecilia, de uma forma mais romântica e atrevida, Lorde Fabião afastou-se, deixando Goodwin sozinho no jardim interior, perguntando-se se lhe tinha sido dada permissão para partir ou não.
Ao entrar no Castelo percebeu que o Príncipe Edmundo já não mais tocava a sua flauta nem a Princesa Bianca cantava com a sua voz aguda e rigorosa. Vindo do Salão o único som que se ouvia era o de pratos e copos a serem retirados, o de terrinas e travessas a serem recolhidas, e a conversa rápida das moças da cozinha, que comentavam no vestido das senhoras e meninas e nos jovens bonitos e fortes que tinham servido.
Goodwin atravessou o Salão e desceu por uma das escadas de caracol até às cozinhas, de onde ainda vinha o cheiro a comida. Goodwin gostava das cozinhas - eram uma divisão ampla e iluminada por centenas de velas dentro dos mais variados frascos de vidro. Ao centro havia uma comprida mesa, entre dois bancos corridos, onde os guardas do Rei eram bem vindos a sentarem-se a qualquer hora do dia ou da noite para comerem algo que lhes aquecesse o espírito antes ou depois de um turno de vigia. Nas cozinhas, para além da dúzia de moças que servia às mesas e que ajudavam na lida geral do Castelo, trabalhavam duas senhoras, Caroline, a mais nova que, por vezes, ainda se insinuava a este ou aquele cavaleiro, e Gertrudes, de cabelo já a ficar grisalho e com rugas a formarem-se em volta do sorriso.
- Goodwin! Que bom ver-te por aqui - exclamou Caroline, mostrando ao jovem que se deveria sentar no banco. - Não me digas que já tens fome! O almoço acabou de ser servido. Não faltaste ao almoço, pois não? Ouviste a música do Príncipe Edmundo? Não é maravilhosa? Sabes, Goodwin, por vezes ele vem aqui a baixo, o Príncipe. Mas só quando não está cá mais ninguém.
- Eu almocei, sim, estava óptimo - respondeu Goodwin, sabendo como Caroline gostava de falar. - Na realidade estou de partida, preciso de mantimentos. Não sei quanto tempo demorarei até conseguir encontrar uma estalagem, ao certo, portanto aquilo que tiveres por aí há de me chegar.
- Ah! Sim, ouvi dizer - movimentava-se pela cozinha enquanto falava, levantando a voz quando se afastava mais do local de onde Goodwin a observava. - O Príncipe Edmundo contou a Sir Felipe, no outro dia. Estavam a falar de amores que pareciam impossíveis. Sir Felipe passa muito tempo aqui em baixo com o Príncipe Edmundo. São muito próximos, os dois. Gostam de se sentar de cabeças juntas, ali naquele canto, e discutir coisas de que eu nunca ouvi falar.
Goodwin torceu as mãos no colo, bateu o pé nervosamente e despenteou o cabelo. Aquela era a razão pela qual por vezes evitava as cozinhas quando estava completamente sozinho. Caroline gostava muito de falar, falava tanto que Goodwin perguntava-se se por vezes ela se esquecia de que estava mais alguém ali, e falava da vida de tudo e de todos. Goodwin gostava de a ouvir falar, mas não gostava de saber o que o Príncipe Edmundo fazia, muito menos o que é que ele fazia com Sir Felipe. Limpou a garganta.
- Já estou a falar de mais, não é? - perguntou Caroline, soando quase que embarassada. - Desculpa-me. Já me estou a calar.
Ficou em silêncio por um minuto e meio, até que se lembrou de uma outra história qualquer para contar, sobre Dom Ricardo, ou sobre uma das moças que trabalhavam na cozinha, Goodwin não soube muito bem. Em vez de escutar Caroline viajou dentro da sua própria mente, esperando pelo aviso de que a trouxa que a senhora lhe preparava estava pronta.

espilce

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