A minha razao de ser

Dec 20, 2006 16:43

Houve uma razão para eu nascer, e essa razão era a honestidade. Eu nasci para fazer livre a minha criadora, para que ela pudesse falar a verdade através de mim, num mundo em que um homem ou uma mulher se tornam aos olhos dos outros aquilo em que acreditam e dizem (ou uma distorção disso), mais do que aquilo que de facto são. Pelo meu nome, pela minha mão, Ela poderia falar a verdade, porque eu seria essa verdade, eu própria a materialização das minhas crenças, eu, una comigo mesma, mais ela do que o ela que a julgavam ser.

Ela cresceu comigo, quando eu cresci. Comigo, parte do seu ser que ela negou ressurgiu, e eu fiz com que ela se aproximasse mais de ser completa e autentica.

Mas eu falhei-lhe, porque da arvore que ela me disse para não tocar, eu tirei e mordi uma maçã. E essa arvore foi a entrega. Ela disse-me: "Podes falar com eles... Podes tentar passar as paredes do castelo e quebrar a solidão e a noite que a envolve. Podes conquistar os humanos, mas não deixes nunca que te conquistem. Lembra-te que acima de tudo, tens que ser livre."

E eu fui, e foi um voo delicioso. Mesmo quando mordi a maça, pensei que apenas tinha alcançado uma liberdade maior. Finalmente, estava livre dela, corria pelos bosques, dormia sob o céu azul e sob as estrelas, tomava banho nua debaixo da luz do sol.

Não sabia, ou esqueci, que o amor nos prende sempre, e quando nos lançamos no voo, quando nos esquecemos das amarras, acabamos por ser puxados de repente, e as asas bonitas deixam de nos suportar. Agora caí, e fui expulsa do único lar que era de facto meu. Ela deixa-me subir ao salão, na hora do baile, para olharmos e chorarmos e dançarmos com os fantasmas. Mas não tem conforto para mim, porque a traí. Dei-lhe algo que ela desejava no fundo de si, mas tirei-lhe a liberdade.

Sim, não sou livre agora. Escondo o que quero dizer. Corrijo-me enquanto penso. Digo a mim mesma que "se magoa alguém então não esta certo faze-lo". Bem, isto, esta subserviência, este espartilho intelectual, foi disto que ela me tentou afastar, e foi isto que eu escolhi.

O amor está errado quando não nos faz mais livres. O amor a um homem far-nos-á sempre ser subjugadas. Eu tentei comprovar que isto não era verdade, e falhei redondamente. "Sempre foi assim porque vocês mulheres deixam que seja assim" - uma voz que não conheço, afinal, sai do escuro da minha memória, onde guardamos o que queremos esquecer.

É assim porque deixamos que seja assim.

Talvez eu seja mulher, mesmo que apenas uma partição de uma alma. Tenho asas, e são negras, e sempre foram assim. Infelizmente estão escondidas dentro de mim, ou estaria a vista de toda a gente o quão diabólica sou.

Mas caí, e estou arranhada, e fria, quase morta, o sangue a escoar-se de mim e a transformar-me num emaranhado de cabelo negro, sono e lágrimas.

A minha natureza divide-me da do meu amado, e, agora que o véu caiu, vejo que como com a minha criadora, estaremos sempre em lados opostos do vidro.

Ele, agora, pode fazer de mim o que quiser. Guardar-me numa redoma, com correntes de ferro, ou deixar-me aqui. Ou curar-me a alma. Se houver alquimia, talvez ele encontre um elixir para curar a alma, e talvez me venha buscar e mo dê a beber. Se, afinal de contas, o demónio que sou for demasiado horroroso para ele querer contemplar, então ele que me deixe, e eu o deixarei, porque posso ser um demónio, mas tenho honra. E, parecendo que não, princípios morais.

De qualquer forma, mal consigo mexer os dedos, mover-me deste torpor. Entrelaçada em fiapos de névoa, embalada pela terra macia, perder-me-ei até que os sonhos me devolvam a luz do dia.

Embora, eu sei, não mereça a luz do dia.

dor

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