N.E.R.D

Apr 20, 2008 21:11



Lembro de quando eu era criança; e sempre que ganhava uma escova de dentes nova dos meus pais eu ia imediatamente escovar os dentes. Era divertido como eu me sentia empolgado quando a escova era nova, e corria pro banheiro naquela expectativa, como se não fosse apenas mais uma escova de dentes. Como se algo novo, inesperado, fantástico fosse acontecer apenas por ser uma escova nova. Essa sensação durava meros três dias, se muito, e depois ela virava uma escova como as outras. Não sei o que eu tinha na cabeça, mas o que quer que fosse, eu percebi que depois de alguns anos, não ficou apenas na escova de dentes.

As coisas pra mim sempre pareceram descartáveis demais. Não sei se talvez pelo fato de eu colocar tanta expectativa, tantas vontades, de projetar meus sonhos nessas coisas, e daí, me decepcionar ou simplesmente cansar. Enjoar. Deixar de lado. Tudo acaba virando mais uma escova de dentes na minha vida. De vez em quando eu paro pra pensar e acho que as únicas coisas permanentes na minha vida são as cicatrizes. Tenho uma perto da sobrancelha.

Hn, celular outra vez. Eu sempre esqueço que odeio esse aparelho antes de dar meu número a alguém. Odeio essas invenções que gritam demais. Por isso não gosto de televisão, e o telefone é uma necessidade, do contrário não teria. Mas gosto de rádio.

-Alô?

Isso me lembra que gosto de relacionar pessoas a objetos da minha vida. Como meu pai, ele sempre me lembrou uma privada; nós recorremos a privada apenas por comodidade, conforto, mas também poderíamos recorrer ao quintal do vizinho, ou uma árvore qualquer. Meu pai sempre me lembrou uma privada principalmente porque mesmo passando a vida toda agüentando merda dos outros, nunca reclamou. Principalmente as merdas da minha mãe; ela em especial me lembra vários objetos, por exemplo, um canudo porque qualquer um chupa. Ah, é claro, tem o meu irmão mais velho que eu gosto de pensar como um termômetro. Ele sempre estava na temperatura ambiente, mas se as coisas esquentassem um pouco ele também esquentava, e aí o barraco começava. “Você é uma puta e você é um merda, odeio minha família, blá, blá.” Um puta bicha chorona. E daí que eu gosto de pensar em mim como uma tela. Quando eu era criança, era uma tela aonde minha família projetava os sonhos, as novelas, o meu futuro mas, é... uma hora o filme acaba. Por isso acho que eles não se importam comigo.

-Que? Tô ouvindo sim... -É mesmo. No telefone era o Sneeze; a gente chama ele de Sneeze porque o cara sempre começa a espirrar feito um doido depois que cheira. Eu não sou muito ligado nessas coisas não. Ele estava me chamando pra sair. Como se eu precisasse do santo chamado do Sneeze pra sair a noite, logo eu. Disse que não tava muito a fim mas ia, afinal não é como se eu fosse fazer algo útil sozinho aqui.

Quando a gente sai, geralmente o ponto de encontro é uma vendinha que fica algumas ruas de distancia. O Moe que é dono daquilo, então de vez em quando a gente consegue uns cigarros de graça. Bebida não, mas cigarro de vez em quando. Pra um bando de ferrados isso vem a calhar. E hoje a noite tá frio pra caralho, uma bebida até faria bem.

-Bichas! -pelo jeito eles não reconheceram que eu quem tinha gritado isso porque já viraram com cara feia. Eu ri. A fumaça do cigarro misturava com aquela outra fumacinha que sai quando a gente respira no frio. O Sneeze tava lá todo empacotado agitado e espirrando. Por isso ele me lembra um daqueles bonequinhos de corda, mas no caso do Sneeze ele é movido a pó. Só depois que eu fui chegando perto que deu pra notar que ele tava conversando com o Rocco. Quando eu já conheci ele já tinha esse apelido, que na verdade nem sei de onde veio ou se é mesmo um apelido, mas sinceramente eu nem ligo. Ele é legal, eu acho. É legal do tipo normal. -Tudo certo, Oleg?

-Tudo, tudo certo. -Oleg foi o que veio me receber. No começo a gente tinha medo dele porque é o tipo alemão pirado. Esses alemães são todos pirados. O Oleg não é exceção, ainda mais com essa pinta de nazista, mas ele também é legal. Ele intimida e isso é legal. -Então, alguma coisa pra hoje?

-Sim. -Eu estranhei um pouco quando o Oleg riu. Geralmente isso significava duas coisas -ou nós iríamos caçar prostitutas, ou dar uma surra em alguém. -Vamos fazer uma visitinha a um camaradinha... -Sabia.

-O que? Quem?

-O Cagão pegou a mulher do Oleg! Aquele desgraçado! -quem contou foi o Sneeze depois que a gente chegou na rodinha. Eu não tava acreditando. Não sabia nem que o Cagão gostava de mulher, quando menos que ele conseguiria pegar alguma na vida, e que muito menos seria a mulher do Oleg! E o Cagão é maior feio. -Foi na festa da semana passada, cara, que merda.

-Ei, ei, ei, ei não precisa espalhar pra todo mundo! -O Oleg tava de cara fechada e braços cruzados. Mas pô, não dava pra não rir. Pobre, pobre Oleg, vai ser zoado pro resto da vida agora porque perdeu uma mulher pro Cagão. O pior de tudo é que foi justo pro Cagão, que ganhou esse apelido por ter fugido de uma briga com o Oleg ano passado na escola. Eu que dei a idéia do apelido, aliás. -A gente chega lá na casa da Trish dá umas porradas no Cagão e pronto.

-Tá tendo festa na casa da Trish?
-Tá. O Cagão tá lá. Deve tá achando que só porque pegou uma mulher uma vez na vida vai conseguir pegar mais!

A gente foi no carro do Rocco. Legal de estar de férias é que tem festa todo dia, cada dia na casa de uma galera que conhece alguém, que conhece um outro alguém que acaba conhecendo a gente, daí a gente vai. Não como se na faculdade não tivesse festa todo dia também, mas lá é diferente. São festas de mais nível, sei lá. Aqui é só aquele pessoal tentando parecer popular, o pessoal feio excluído, e sei lá, o pessoal legal. Mas dá pra ir mesmo assim.

A casa da Trish é grande, grande pra porra. E tem uma piscina, e os pais dela meio que cagam dinheiro, então as farras lá são menos piores. Tá vai, são legais até.

-Mas me conta como foi...-eu tive que falar baixinho, o Oleg tava meio puto caminhando na frente pra entrar na festa. Não queria que sobrasse pra mim. -Ainda não acredito que o Cagão fez isso.

-Pff! -o Sneeze riu e balançou a cabeça, vindo se meter.Ele parecia um rato branquelo também. -Que nada, a mulher do Oleg tava caindo de bêbada cara, me disseram que ela tava desmaiada no sofá da sala e o Cagão se aproveitou pra...!

-Que nada, cala a boca, Sneeze. -Eu sempre achei engraçada essa mania do Rocco de dar uns tapas na cabeça do Sneeze. Fazia um barulho engraçado. Acho que pela falta de cabelo dele, provavelmente. -Lembra que o Oleg não quis ir naquela festa porque tava brigado com ela? Parece que a Jenny tava puta e quis pegar o Cagão só pra irritar o Oleg. -Jenny é a mulher do Oleg.

-Então ela pegou o Cagão por vingança?

-É, é o que parece. -o Rocco deu os ombros e o Sneeze acendeu um cigarro. Agora eu fiquei meio sei lá. O coitado do Cagão deve estar maior feliz achando que a mulher do Oleg tava dando mole de verdade, mas era só frescura de menina, e agora ainda por cima o Cagão vai apanhar por isso. Meio chato. Mas fazer o que, se a Jenny chegasse pra mim eu não ia dar conta cara, ela é a mulher do Oleg. Esse Cagão é muito burro.

Mas em fim, o que se seguiu todo mundo já tava acostumado. O Oleg chega que nem um animal pra cima da vitima que seja, no caso o Cagão, aí dá uns socos, berra um pouco, xinga um pouco, dá uns olhares assustadores pra galera e depois a vitima, no caso o Cagão, sai correndo e algumas vezes chorando, como o Cagão fez e... ah, daí a festa continua. Da ultima vez que eu vi o Oleg tava lá se agarrando com a mulher dele subindo pra um dos quartos. Não é difícil imaginar onde isso vai dar. Provavelmente amanhã ninguém mais vai lembrar dessa zona, só o Cagão e os hematomas dele.

Ou era o que eu achava.

incompleto, post, conto, n.e.r.d

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