IV.
Uma nova esperança!
A oferta do Sacerdote.
Aiolia gelou, olhos abertos mas completamente alheio ao mundo à sua volta. Mal se apercebeu de quando um par de guardas levou a caixa de Pandora da armadura que desejara até à arena e tão-pouco de quando Phaeton se arrastou até ela, com a ajuda do seu mestre, para a receber como prémio. A multidão enlouquecera e aplaudia mais forte que nunca, mas os únicos sons que reverberavam na cabeça do louro eram as palavras do Sacerdote declarando Phaeton vencedor.
Subitamente deu-se conta que as suas mãos lhe ardiam. Baixou o olhar e percebeu que a pele sobre os nós dos seus dedos estava desfeita, mas tinha cerrado os punhos de tal forma que tinha estancado a hemorragia. Não se tinha dado conta da acção ― pensava que toda a energia o tinha abandonado ao ouvir as palavras do Sacerdote.
Devia haver algum engano, disse a si próprio. Phaeton não podia ter ganho, não depois de Aiolia ter demonstrado a sua superioridade de forma tão inegável. Mesmo que o seu adversário tivesse conseguido encetar aquele golpe de sorte no início, não havia dúvida que Aiolia o tinha batido depois disso, provando que era o melhor dos dois e que tinha o maior cosmo...
Olhou para o Sacerdote, esperando encontrar alguma indicação de que o que julgava ter ouvido estava errado e que, de alguma forma, estavam à espera que Aiolia avançasse. As suas últimas esperanças foram despedaçadas quando viu que a caixa de Pandora se abria, revelando uma armadura de bronze em tons de azul, vermelho e amarelo movendo-se como que magicamente para cobrir o corpo mazelado de Phaeton.
O ruído ensurdecedor dos espectadores encheu os seus ouvidos então, e o gelo que lhe apertara o coração desfez-se. Aiolia decidiu que já bastava - não queria assistir àquele espectáculo, nem mais um momento, e abalou do estádio.
No exterior, a tranquilidade reinava ― de facto, tudo estava demasiado pacífico para o leonino. Os campos de treino estavam desertos, uma vez que toda a gente se encontrava no coliseu, e portanto não restava nada para perturbar a calma e árida paisagem de grandes penhascos caiados e planaltos destroçados.
Tal vista não agradava a Aiolia de todo.
Lançou-se ao objecto mais próximo ― uma coluna esculpida de calcário, plantada no terreno com um certo ângulo ― e, mesmo com punhos sangrentos, bastou uma explosão de luz dourada e um grito de fúria para desfazê-la em pedaços. O seu punho manteve-se no ar durante alguns momentos, até que o Leão decidiu que a destruição não tinha sido suficiente para apaziguar as emoções que crispavam no seu interior.
Aproximou-se de um pedregulho imenso e estava prestes a repetir o feito quando ouviu algo atrás de si.
― Aiolia, pára!
A voz imperiosa, mas familiar agiu como um banho de água fria, ajudando-o a aclarar as ideias, porém não foi suficiente para acalmar completamente a sua raiva.
Em instantes, o rochedo foi pulverizado e as partículas espalharam-se numa nuvem de pó que demorou alguns segundos a assentar sobre o resto da areia.
― Marin ― respondeu Aiolia, curvando-se sobre si mesmo ao sentir finalmente a derrota. ― Falhei.
Marin não disse nada, optando em vez disso por dar um passo em frente para confrontar o seu amigo. Os olhos verde-mar de Aiolia ficavam-se pelo chão, perdidos ao tentar distinguir os pedaços do rochedo do resto da areia. Breves faíscas de relâmpago percorriam ainda a superfície que os seus punhos tinham atingido.
― Foi injusto, eras muito melhor que ele, mas não deves desistir ― disse a rapariga. ― Da próxima vez...
― Da próxima vez o quê, Marin? ― irrompeu o jovem, olhos subitamente fixos na máscara que cobria a face da sua melhor amiga. Odiou-se por lhe gritar, mas não se conseguia conter. ― Achas mesmo que alguma coisa vai mudar? E isso é se tiver oportunidade de tentar outra vez. Já ter tido esta foi sorte!
Voltou-se, incapaz de olhar para Marin. Ela permanecia atenta, silenciosa, e mesmo sem poder ver a sua face, mesmo sem qualquer sinal externo do que poderia estar a passar pela mente dela, ele simplesmente sabia que ela estava a sentir pena dele. Odiou isso.
― Já devia era ter aceitado que o Phaeton tem razão. Todos eles tinham razão! Ninguém vai dar uma armadura ao irmão de um traidor! Devias-te afastar de mim também se alguma vez queres ser cavaleira.
― Não sejas idiota ― disse Marin com o mesmo tom severo e determinado de antes. ― Eu nunca...
― Perdão ― uma voz anasalada interrompeu.
Aiolia e Marin voltaram-se e deram de caras com um dos guardas do Santuário, balançando o seu peso de pé para pé e aparentando de uma forma geral que estar ali era a última coisa que queria.
― O Sacerdote quer ver-te no seu salão imediatamente ― disse a Aiolia. Uma vez que a sua missão estava cumprida, retirou-se para o estádio, onde altos sons de celebração ainda se faziam ouvir. ― Traidor... ― murmurou, quando tinha já posto alguma distância entre eles.
Aiolia não deixou de ouvir e cerrou os dentes para se impedir de fazer algo mais drástico. Conseguiu frear o seu temperamento desta vez e, com um aceno à sua amiga, partiu ao encontro do governante do Santuário.
― Boa sorte ― ouviu Marin dizer.
* * *
Ao chegar ao templo do Sacerdote, Aiolia foi surpreendido por um par de guardas que esperavam à porta. Abrandou o passo, imediatamente alerta pela situação invulgar ― seria uma emboscada?, teria o Santuário finalmente decidido que era chegada a altura de se livrarem dele?, serias as ordens do Sacerdote nada mais que um pretexto para o atrair a uma zona isolada? ― mas os guardas ignoraram-no enquanto ele passava pela entrada com as suas majestosas colunas.
Chegou ao salão do trono do Sacerdote e deparou-se com outro cenário pouco comum: as portas douradas que iam do chão ao tecto estavam completamente abertas, mas não havia nem sinal do Sacerdote. Sem saber o que se estava a passar, o pequeno e cansado louro quase pulou quando uma voz se fez ouvir, ecoando pelo espaço amplo.
― Entra, Aiolia. Por aqui.
Era o Sacerdote e a voz vinha de algum lugar à sua frente. Olhando em redor para se assegurar de que estava sozinho, avançou pelo rico tapete vermelho que ornava o caminho até à sala de audiências, em direcção à origem do som. Ali encontrou o Sacerdote, ao lado do trono e escondido pelas colunas, com as suas costumárias vestes escuras e elmo de asas vermelhas.
― Lutaste bem hoje ― disse.
― Pelos vistos, não bem o suficiente ― Aiolia não resistiu e retorquiu. Logo de seguida mordeu a língua e zangou-se consigo mesmo por responder torto ao representante da deusa. Felizmente, o homem pareceu não se importar.
― Estás aborrecido ocm a minha decisão? ― Aiolia não teve de responder. O fogo que não conseguia conter do seu olhar foi resposta bastante para o Sacerdote. ― Não estava enganado, sabes? Phaeton realmente merecia tornar-se Cavaleiro de Bronze mais do que tu.
O comentário magoou-o e subitamente tudo o que Aiolia queria era despachar esta conversa o mais rapidamente possível. Detestava a maneira como o Sacerdote o estava a fazer sentir, mas odiava ainda mais a maneira como não conseguia controlar as próprias emoções. No seu interior estava furioso com o Sacerdote, o seu admirável líder, a quem devia tratar com o maior respeito em vez de com raiva e frustração ― e de certeza que não devia estar a acusar o homen mais recto da Terra de cometer uma injustiça.
O Sacerdote deixou soltar um barulho da sua gargante ― Aiolia julgou que podia ser de divertimente, ou talvez de troça ― mas não falou mais. Em vez disso, afastou-se, revelando um objecto que estivera escondido atrás das suas vestes voluminosas: uma caixa de Pandora dourada com uma figura de uma cabeça de leão de lado.
A respiração faltou a Aiolia quando a viu. Sabia exactamente o que era, mas estava quase receoso de pôr a hipótese de que aquilo poderia significar aquilo que pensava.
― É tua ― veio a confirmação.
O louro mal podia acreditar no que estava a ouvir. Isto... era bom demais para ser verdade. Depois de tudo o que passara nos últimos anos, era impossível ele ter tanta sorte assim... No entanto, o Sacerdote ainda ali estava, dando-lhe espaço para processar a informação e sem dúvida estudando a sua reacção. Não se estava a rir e quando Aiolia deu um incerto passo em frente e tocou na caixa, ninguém o travou. Seria possível que... isto era a sério?
As suas pernas perderam a força e ele ajoelhou-se perante a caixa dourada da armadura de Leão ― a sua armadura ― e o Sacerdote. Era uma sensação esmagadora. A sua mão elevou-se mais uma vez para repousar reverentemente em cima do desenho da sua constelação guardiã.
O metal era frio de início, liso como nunca imaginara, mas Aiolia podia jurar que sentiu algo quente e poderoso reagir no interior, respondendo ao seu toque. Sorriu, lembrando-se de algo que o seu irmão lhe dissera em tempos acerca das armaduras: "elas estão vivas". A energia que sentia agora não tinha nada a ver com a breve erupção que observara quando Phaeton tinha posto a sua armadura, e Aiolia podia apenas imaginar o que aconteceria quando abrisse realmente a caixa.
Estava perfeitamente exausto e não havia niguém por perto a não ser ele e o Sacerdote. De momento, o Santuário em peso acreditava que ele tinha sido humilhado na luta contra Phaeton e era possível que estivessem ainda todos no Coliseu, celebrando a sua derrota com pompa ― mas Aiolia nunca se sentira melhor.
― Há ainda outros desafios que terás de enfrentar para te provares digno de usar essa armadura ― disse o Sacerdote, trazendo Aiolia de volta ao mundo real. ― O Phaeton era dificilmente um adversário adequado para medir a tua força. No entanto, não vejo razão para que não fiques com ela desde já.
― Obrigado, Mestre. Não se vai arrepender disto! Eu... ― Aiolia procurava as palavras certas, quando reparou que ainda estava de joelhos. Logo uma outra memória veio à superfície de algo que o seu irmão lhe ensinara em preparação do dia em que se tornaria cavaleiro. ― Por Atena, pela Justiça e pela Paz, eu juro...
― Não há necessidade disso agora, Aiolia ― interrompeu o Sacerdote. ― Haverá muito tempo para fazeres os teus votos mais tarde.
O jovem Leão olhou-o, curioso ― tanto quanto sabia, era costume os recém-inaugurados cavaleiros fazerem as suas promessas à deusa no momento em que recebiam as suas armaduras ― mas não vieram mais explicações debaixo da sombra do elmo do Sacerdote.
― Vá ― disse o soberano do Santuário. ― Abre-a.
Aiolia estava confuso e simultaneamente entusiasmado mais uma vez. "Só deves vestir a tua armadura quando a tua vida está em perigo ou quando estás ao serviço de Atena. Não há lugar para a vaidade num capaleiro, irmãozinho." Mas Aiolos era um traidor. O que é que ele poderia saber acerca das qualidades de um cavaleiro?, pensou Aiolia. Rendendo-se à sua curiosidade, puxou a corrente que pendia da boca do leão e que servia para abrir a caixa da armadura.
Só teve tempo de ver um rasgo de uma figura imponente de uma fera a rugir, meio coberta por um pano branco, antes da armadura começar a brilhar como um sol em miniatura. A luz era demasiado intensa e, enquanto os seus olhos estavam fechados, Aiolia perdeu completamente o espectáculo da armadura a separar-se e a reagrupar-se em seu redor. Tudo o que sabia era que de repente sentia um formigueiro a tocar-lhe gentilmente o cosmo e a convidá-lo a arder até limites nunca dantes atingidos. Nenhuma das suas feridas o incomodava mais. Sentia-se animado, rejuvenescido...
― Parece que foste aceite ― comentou Saga. Aiolia estava demasiado inebriado pela sensação do que era usar uma armadura para encontrar uma resposta. ― Mas o teu percurso ainda agora começou...
«Ergue-te, cavaleiro de Atena!
Fim.