Décimo Nono Dia

Nov 19, 2008 22:52

Tenho as palavras em dia ainda. Estou inspirada com a história agora. Tem alguns erros e confusões (a história em si), mas eu corrigirei isso quando começar a fazer a revisão. Contam-se 31.770 palavras =)

A tripulação gritou por ele, tentou faze-lo regressar, dizer-lhe que não valia a pena, era apenas um estúpido alguidar antigo, e que era demasiado perigoso mergulhar naquelas águas. Mas Goodwin não os ouviu. Impulcionou-se com os braços e pernas, os seus cabelos toldando-lhe a visão, mantendo o máximo de ar nos pulmões. As suas bochechas doiam, o ar já se tinha gasto, a visão toldava-lhe-se, a cabeça rodava rapidamente.
Uma mão suave passou-lhe na bochecha, nos cabelos, no corpo. Uns lábios frios e cheios beijaram os seus, obrigando-o a engolir água salgada que pareceu queima-lo por dentro. Braços delicados abraçaram-o, envolvendo-o com cuidado, puxaram-no para baixo, para longe da luz, para longe do oxigénio. A escuridão tomou-o, confundi-o, fe-lo perder-se entre o que é real e o que nunca o chegará a ser. O tempo passou e Goodwin deixou de sentir a dor, de sentir o frio...
Precionou-lhe o peito e expirou através dos seus lábios. Goodwin tossiu e cuspiu àgua, os seus olhos abriram-se muito e inspirou profundamente.
- Não podia estar mais feliz por te ter encontrado - disse uma voz feminina, com um sotaque aveludado e um tom de voz que se assemelhava tanto a uma canção que Goodwin se perguntou se tinha ido desta para melhor. - Vieste no momento certo... Vira-te tantas fezes nos meus sonhos... Conheceste a minha Rainha...
Os seus cabelos eram longos, encaracolados, chocolate. Olhos grandes e redondos, nariz perfeitamente redondo e arrebitado, lábios cheios e vermelhos. O seu corpo nú era belo e curvilíneo, como nas pinturas, mas os seus pés tinham a forma de cauda de peixe, coberta de escamas douradas, cravejada com milhões de pequenos diamantes num padrão impressionante.
- Quem és tu? - perguntou assutado, tentando levantar-se. A jovem sereia agarrou-o pelo combro e manteve-o colado à areia. - Onde estou eu?
Percebeu que o sol se pusera há muito tempo, que a única luz que podia ver era o luar reflectido no oceano. As ondas vinham, rebeldes, embatiam contra a areia, quebravam-se em milhares de gotas, molhavam-lhe os pés e as calças. Perdera os sapatos durante a viagem, as suas roupas estavam encharcadas, não tinha mais a mochila consigo.
- Onde está a minha mochila?
- Está ali - apontou a sereia, brincando com um caracol do seu cabelo, deixando visível o seu seio. - Eu sou quem tu quiseres que eu seja... E esta é a nossa gruta.
- Nossa? Onde está o meu barco, a tripulação? - levantou-se ignorando o esforço da sereia para o manter deitado e abriu a mala. Vasculhou entre comida, agora estragada e ensopada, roupas e outros essenciais. No fundo da sua mochila, tão seco como se tivesse sido protegido por algum feitiço, estava o livro de Espilce. Suspirou aliviado.
- Porque é esse livro tão importante para ti? - perguntou a sereia, chapinhando na água com a sua cauda.
- Qual é o teu nome?
- Sou Moura, da quinta geração, uma das princesas dos mares...
- Diz-me, Moura, como sair daqui.
- Não te posso dizer isso, belo jovem humano... - arrastou-se com os braços, o seu corpo roçando na areia, alcançou a perna de Goodwin e passou-lhe a mão pela coxa. - És meu, humano... Diz-me o teu nome...
Goodwin sentiu-se tentado a tocar-lhe, a alcança-la, a dizer-lhe tudo o que lhe pedisse. A sereia começou a cantar baixinho, numa voz tão suave como a água, com tantos altos e baixos como o curso de um rio. Cantava numa língua leve e fluída, cheia de sons mágicos que Goodwin nunca ouvira. Baixou-se e tocou nos cabelos de Moura, deixando que os seus dedos se enlaçassem neles.
- Sou Goodwin de Helmeswella...
A sereia continuou a cantar, suavemente, puxando-o consigo para a água gelada. Tirou-lhe as roupas com gestos treinados e descobriu-lhe o corpo sem parar de cantar. Perdeu-se com ele na escuridão das águas, recebeu-o em si com desejo ardente, usou-o e mostrou-lhe tudo o que ele nunca sequer tinha imaginado. Satisfez as suas mais loucas fantasias.
Quando terminou com ele levou-o de volta à gruta, onde a maré já tinha subido, havendo agora apenas uma pequena ilha de areia no fundo da gruta escura. O sol rompia suavemente o horizonte e Goodwin estava adormecido nos braços delicados da sereia Moura. Ela deixou-o na pequena elevação, beijou-lhe os lábios entre abertos e desapareceu.
Quando Goodwin acordou estava sozinho, nú, deitado na areia fria, rodeado de água. O seu corpo estava dorido e gelado, os cabelos ainda molhados. Lembrava-se de uma música bela, a mais bela que alguma vez ouvira, lembrava-se de uns olhos claros como a água, de umas mãos suaves, de uma cauda de escamas douradas.
- Bom dia, Goodwin de Helmeswella - cumprimentou a voz delicada e suave que ouvira no seu sonho bom. - Dorido?
Sorria de forma desafiadora, deixando Goodwin desconfiado. No seu sonho a sereia salvara-lhe a vida quando se afogara no mar, para depois o levar para aquela gruta, se aproveitar dele e o deixar ali sozinho.
- Porque me deixaste aqui? O que queres de mim? - perguntou, recuando uns quantos passos das ondas que batiam e se quebravam na areia, e da sereia que se sentava sedutoramente penteando o seu cabelo.
- Então, então... Ontem quiseste-me, desejaste-me...
O que tinha ele feito? Não fora aquilo apenas um sonho? A sereia tentou aproximar-se, começando a entoar uma música suave.
- Não! - gritou Goodwin, tapando os ouvidos fortemente com as mãos. - Eu lembro-me... enfeitiçaste-me com essa canção!
- Oh, eu não lhe chamaria enfeitiçar... - riu-se Moura, deliciada. - Apenas fiz com que as tuas defesas caissem, é tudo...
Afastou-se ainda mais da sereia, estando tão longe que não conseguia mais ouvir o seu canto quando destapava os ouvidos. Sentiu nas suas costas as paredes frias e húmidas da gruta. Não podia recuar mais.
- Eu não te quero - respondeu Goodwin.
A sereia suspirou.
- A jovem que chamavas ontem... - disse numa voz magoada, voltando-se de costas para ele, encarando o nascer do sol. - Benedita...
- Casarei com ela assim que regressar a terra - disse. É claro que para isso teria de ter olhos púrpura, mas isso a sereia não precisava de saber.
Moura ficou em silêncio, chapinhando na água rapidamente, sem olhar para Goodwin, as suas mãos em punhos fortes na areia.
- Ficarás aqui - declarou, mergulhando de cabeça nas águas frias. - Se eu não te posso ter, ela também não poderá.
A cauda dourada mergulhou novamente nas águas e desapareceu de vista. Goodwin procurou a sua mochila rapidamente e enrolou-se na primeira coisa seca que encontrou. Era um cobertor velho, não muito grosso, mas ao menos protege-lo-ia da brisa marítima. Quando deixou de tremer procurou o livro de Espilce e com o que escrever. Sentou-se contra a parede da gruta e abriu o livro na página que ele mesmo escrevera.
Descreveu como encontrara uma embarcação que o levasse ao mar, como caíra ao mar, como fora salvo por uma sereia, como ela o enfeitiçara, o que ele fizera com ela. O sonho mistura-se com a realidade facilmente, e Goodwin não sabia distinguir qual das partes ele vivera e qual ele sonhara, pelo que descreveu tudo como se lembrava. Suspirou e abraçou os joelhos, olhando o mar. Não podia deixar a gruta, pois não sabia para onde se dirigir, nem a que distancia estava de terra firme. Sabia nadar graças às brincadeiras de infância no rio da aldeia, mas o seu estilo era rude e lento - mais do que algumas horas a nadar e seria engolido pelas ondas.
A sua barriga controceu-se, implorando por comida e os seus lábios estavam secos e cortados. Mordiscou o pão húmido que tinha na mochila e bebeu um gole de água doce, tentando guardar o máximo para os tempos que se avistavam. Quanto tempo o manteria a sereia ali?
O Sol veio e foi-se, levantou-se e deitou-se, apareceu e desapareceu, levando a lua consigo nesta dança ritmada. Ao terceiro dia Goodwin tinha ficado sem alimento e a água doce já se esgotara no dia anterior. Bebia a água do mar, ignorando o seu sabor salgado, e enganava assim a fome. Decidiu entrar na água, procurar peixe, procurar algas, o que quer que fosse com que se pudesse alimentar e acalmar o revirar do seu estômago vazio.
Despiu-se das roupas que haviam aparecido na areia, trazidas pela corrente, na madrugada anterior, e deixou que as ondas lhe lambessem os pés. A água estava fria, mas Goodwin mergulhou de cabeça assim que pôde.
Um peixe prateado passou por si rapidamente, abanando a cauda tão rápido quanto podia, e outros mais pequenos e escuros fizeram-lhe cócegas ao passarem por perto. Observou-os maravilhado, embora os seus olhos ardessem. Voltou à superfície para recuperar o folgo e voltou a mergulhar a cabeça.
Suave, bela, tentadora, a música que atormentava os sonhos de Goodwin fez-se ouvir na água. Era ainda mais bela do que quando ouvida fora de água, sendo que os agudos se suavizavam e os graves se tornavam inaudíveis, como um sopro. As ondas puxaram-lhe o corpo, os sentidos confundiram-se e, mesmo com o ar nos pulmões a escacear-se Goodwin seguiu a voz. Sabia o que ia encontrar, esperava a jovem sereia Moura, de longos cabelos castanhos, lábios cheios e grandes olhos claros. De uma forma estranha, agora que escutava a melodia por ela entoada desejava-a ardentemente.
Ela esperava-o sorridente e levou-o consigo, beijando-lhe os lábios, partilhando com ele o seu oxigénio, o seu corpo, o seu ser.
A manhã encontrou Goodwin estendido na areia, os seus lábios roxos, a sua pele pálida. Os cabelos embaraçados e sujos de areia, o corpo dorido e cansado. Goodwin suspirou e ergueu-se lentamente. Aquilo fora um erro. Fora tudo um erro, desde entrar na água a deixar-se enfeitiçar pelo canto da sereia. O seu corpo não aguentaria outra noite daquelas, tantas horas de baixo de água uma outra vez. Percebia agora porque tantos marinheiros pereceriam nas águas, levados pelas sereias... Elas não os comiam, não eram canibais... Também não os torturavam, não no sentido tradicional da palavra... Iludiam-nos, confundiam-nos, levavam-nos para o fundo do oceano, onde se serviam deles como bonecos de pano.
Enrolou-se no cobertor velho e esperou, não sabendo bem o que era que esperava. O céu escureceu e trovejou. Gotas gordas caíram nas ondas, primeiro lentamente, ganhando velocidade. O som embalou Goodwin e o jovem perdeu-se dentro de si mesmo, envolto nos seus pensamentos confusos e descoordenados.
Ele nunca sairia dali. Acabaria por morrer, de fome ou sede, ou afogado no oceano. Pereceria naquelas águas e nunca se despediria da vida, partiria sem o saber. O que pensaria Benedita quando ele não voltasse? O Rei Aemilius provavelmente considera-lo-ia um traidor por ter feito o livro desaparecer, o seu nome estaria arruinado, a sua família seria, provavelmente, exilada também. Procurariam o livro dia e noite, caça-lo-iam como se ele estivesse vivo. Estariam à espera de um ataque que nunca chegaria, pois o livro ficaria perdido na gruta... Talvez, pensou quando um relâmpago rompeu os céus, o livro tivesse um qualquer feitiço que o encontrasse, caso fosse perdido ou roubado. Se não tivesse tal protecção, como teria o Rei confiado nele tão precioso manuscrito?
Trovejou e a chuva intensificou-se. Essa era a sua última esperança, que alguém, algures, observasse o caminho tomado pelo livro, se certificasse de que Goodwin não o perdera para aqueles que mais o procuram, ou que desistisse da sua tarefa, ou que fosse preso por uma sereia, qui ça. Teriam de avisar o Rei de que o livro ficara parado, durante tanto tempo, numa gruta no oceano. Se Benedita soubesse, certamente faria com que os homens do rei vasculhassem o oceano inteiro até o encontrarem. Benedita procura-lo-ia. Esboçou um meio sorriso, nostálgico, ao pensar na Princesa. O peito apertou-se-lhe. Precisava de a ver novamente, não podia partir desta terra sem antes ver os seus olhos púrpura, contar as suas sardas, brincar com os seus cabelos...
Algo brilhante mergulhou por entre as ondas, alertando Goodwin. Pareceu-lhe ser um peixe, com uma cauda prateada, movendo-se rapidamente no mar tempestuoso. O jovem levantou-se rapidamente, tapou os ouvidos e preparou-se para enfrentar Moura.
Um tritão prateado, com cabelos cor da areia, olhos cinzentos e corpo musculoso puxou-se para a areia e chamou Goodwin com a mão, mostrando-lhe que vinha em paz.
- Sou Laquemy, enviado da Rainha Murana - apresentou-se o tritão, mostrando-lhe o colar que lhe pendia do pescoço. Era um búzio feito do vidro, tão perfeito que parecia real. Goodwin tinha um igual, que lhe fora oferecido pela Senhora das Águas na manhã em que partira. - O pendente torna-te fácil de encontrar por outros que o usem. Murana pediu-me que mantivesse um olho em ti enquanto te encontrasses nos seus domínios, parecia que ela tinha razão em temer que algo semelhante acontecesse.
- Então estás aqui para me ajudar? - perguntou Goodwin esperançoso. - Vais levar-me de volta a terra?
- Sim e não. Ajudar-te-ei, mas não te posso levar comigo. Moura chora dia e noite, pode-se ouvi-la em todo o Oceano.

espilce

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