Ao abrir os olhos, um dia preto e branco. Como nos filmes antigos de cinema mudo.
Ao levantar da cama, os pés não pareciam tocar o chão. Um suspiro dolorido.
Ele sabia o que estava acontecendo. Sentia o que tinha acontecido, toda essa anestesia repentina só poderia significar uma coisa muito ruim.
Não foi sempre assim, sorriu em seus pensamentos. Eu não fui sempre tão “estranho”, apesar de eu não ser o mais próximo do “normal”. Não pedi pra sentir as coisas, mas eu simplesmente sei quando elas acontecem sem saber como parar. E hoje... justo hoje.
Olhando seu reflexo no espelho, mal tinha forças pra chorar. Talvez fosse mentira, talvez ele estivesse enganado -afinal, hoje era seu aniversário- algo de tão triste assim seria seu presente?
Mas como impedir essas coisas?
Nesse mesmo espelho seu reflexo não estava mais maduro, mais envelhecido, mais sábio. Sua nova idade ainda não garantiu forças para encarar a vida e, junto com ela, a verdade.
A verdade, severa, não foi difícil de descobrir. Com seu par de sapatinhos brancos e vestido azul ele parou em frente a livraria que já se encontrava com as portas cerradas. O que teria acontecido? Aonde o levaram?
Uma semana depois ele soube onde o Senhor Mizuhari estava enterrado. E mesmo com seu aniversário tendo passado, o deixando agora o título de oficialmente responsável por si próprio perante a lei, ele não tinha coragem. Realmente não tinha.
Todos os dias visitava a loja e todos os dias o sininho estava trancado lá dentro.
Não posso mesmo querer ser feliz. Deveria desejar que o Senhor Mizuhari vivesse pra sempre? O pobre coitado merecia descansar? Sim? Não?
Mas pra que abrir meus olhos e encarar essa verdade quando eu podia me agarrar sempre a pontinha de ilusão de que ele sempre estaria aqui comigo? De que eu realmente não seria abandonado? O Senhor Mizuhari me deu o luxo de sentir felicidade em alguma parte de mim e nem acredito que posso ser tão egoísta.
Um mês é o que ele tinha para arrumar um emprego e sair de casa. No entanto, assim como as outras coisas, o Tempo impiedoso passava da mesma maneira, diminuindo a cada segundo seu prazo, ignorante aos seus esforços.
Quantas vezes tinha passado por essas ruas mesmo? Quantas vezes, pedindo algum trabalho, qualquer que fosse e sempre se submetendo a humilhações públicas ou questionários desagradáveis. Quantas? Ele teria que implorar?
Ao menos o Sol parecia se importar com seus sentimentos e nessa manhã estava brando. Ele não sabia o que sentir quando isso acontecia. Sempre quando estava caminhando as ruas ficavam desertas, como se as pessoas tivessem medo dele, como se um menino menina fosse uma peste, uma praga, que contaminaria seus filhos e filhas, netos e netas, traia desgraça e vergonha para sua família e você seria um pai sofrido que acabaria se enforcando no porão.
Um carro passou. Um carro velho, empoeirado e de tom vinho cruzou seus olhos por meros segundos que foram suficientes para paralisar suas pernas no meio do caminho.
Novamente aquela sensação, o pressentimento de que algo aconteceria. O carro, ele não precisava segui-lo, pois sabia muito bem pra onde estava indo. E esquecendo-se do vestido ou do sapatinho delicado ele correu. Correu para a verdade, correu para se descabelar, para perder o fôlego, ficar com o rosto avermelhado e a garganta ardendo com o ar cortante desfilando por suas narinas.
-Sabia... -lá estava o carro. Estacionado em frente às portas da livraria. As portas, tanto do carro quanto da loja, abertas, mas ele iria se aproximar? Sim. Não havia ninguém no carro, deveria estar lá dentro então, era justamente isso que ele tentava espiar pela vitrine amarelada, ficando na ponta dos pés.
Alguém vinha dos fundos, carregando uma caixa vazia. Malibu piscou, agora percebendo que haviam várias caixas dentro do carro. O que estaria acontecendo? Eles estariam fechando a livraria? Não!
-Pois não...? -quando o homem havia se aproximado? Ele olhava Malibu por detrás das lentes dos óculos de armação dourada fina, e o Malibu retribuía o olhar por detrás de suas próprias lentes ridiculamente grossas.
-Hm, bom dia -mas não pode avançar mais por um barulho veio da caixa e fez o homem sorrir, colocando o objeto no chão e meter as duas mãos lá dentro para tirar... um bebê?
-Eu achei que ela ia gostar de brincar na caixa... -disse ele, balançando um pouquinho a criança que estava sorrindo alegremente, vestida numa roupinha de Panda que a fazia parecer um brinquedinho. -Pra ajudar o papai na mudança.
O que diabos estava acontecendo?
-Então você conhecia meu pai?
Os dois estavam sentados em caixas velhas tomando coca cola. O homem estava com a neném sentada em sua coxa. Ela mordia os próprios dedos.
-Sim... ele era... um grande amigo.
-Não era como se a gente não soubesse. Meu pai estava doente por tanto tempo, ele era o único motivo por eu me arrepender de ter me mudado daqui.
Doente por tanto tempo. Então o Senhor Mizuhari também escondia seus problemas. Ele queria ter sabido. Agora desejava que eles tivessem conversado mais, desabafando coisas juntos e ele pudesse procurar consolo nas frases do senhor, ou ele procurar consolo nos biscoitos de Koiji.
-E agora você vai fechar a livraria?
-Não! -a neném emburrou, agora ele balançava a perna e a menina pulava pra cima e pra baixo, com a risadinha aguda ecoando. -Eu estou me mudando pra cá.
“Não sei, acho que minha mulher só estava esperando uma desculpa para o divórcio. Aparentemente foi a morte do meu pai. A verdade era que não estava mais funcionando mesmo, já fazia tempo, mas a gente até que tentou salvar o casamento com um filho... coisa que aparentemente não deu certo. Eu só precisei assinar um papel e bam! Pai solteiro.
Ela nunca quis engravidar, não sei porque fez isso. Não era por mim, ela já não me amava. Nunca vou entender o motivo, mas só posso agradecer né? Fuyu é a alegria da minha vida. E com o divórcio ela e o carro foram as únicas coisas que me restaram. Eu ainda tenho vergonha de admitir, mas era ela que me sustentava...
Meu pai me deixou a livraria, que também era a casa dele. Por isso... como eu não tinha pra onde ir, pensei, nossa! Vamos morar lá.”
-Você vai morar aqui?! -Malibu pontuou a frase com o ultimo gole de sua coca.
-É, eu e a Fuyu. Vou continuar os negócios do meu pai, como ele sempre quis.
Será? Será que isso era uma chance? Ele iria perguntar? Não. Sim? Deveria? Afinal ele deveria amar essa livraria tanto quanto qualquer outra coisa, aonde mais encontraria refugio ou sua salvação com um trabalho? Sim.
-Eu... gostaria de poder ajudar. Senhor Mizuhari era muito importante pra mim também.
-Ajudar? Você... bom...
Era isso. Lá vinha a enxurrada de ácido das palavras que cortariam seu vestido e suas meias brancas, destruiriam seus sapatos e os prendedores de cabelo, derreteriam seu rosto retocado com batom rosa. Lá vinham elas.
-Calma! Não precisa se assustar, só acho que você é muito nova pra trabalhar.
-Já tenho vinte anos. -Então lá ele não poderia mais ser Koiji, teria que ser Malibu.
-Já?! Nossa. Bom, acho que se você gosta tanto desse lugar, toda a ajuda seria bem vinda. -olhou para o bebê. -Né? Ah, olha só, ela gostou de você. Quer segurar um pouco?
Como descrever ter uma criança em seus braços? Ele não sabia. Fuyu era quente e animada, brincando com o tecido de seu vestido ainda roendo os dedos da outra mão. Como uma mãe abandonaria uma criaturinha tão linda ele também não sabia. Mas poderia ficar segurando esse bebê no colo por toda a vida, ser sua mãe e seu pai. Dar amor e brinquedos, carinho e estudos. Livros, muitos livros. E quando ela se apaixonasse pela primeira vez, contaria para sua mãe ou para seu pai? O primeiro beijo. A primeira aliança, com os primeiros votos de amor eterno e depois a primeira dor de ser deixada. Ela contaria? Estaria lá quando seu pai e sua mãe estivessem morrendo? Ela estenderia a mão?
Restava pouco tempo agora para sair de casa. Mas esse assunto não importava.
O importante era recolocar os livros nas estantes, varrer o chão, abrir as janelas, ajeitar as almofadas do sofá e se sentar atrás do balcão de madeira, aonde o Senhor Mizuhari se sentava.
Coisa que ele não sabia era que existiam, sim, pessoas além dele que também apreciavam um bom livro. Que entravam na loja com desejo de ler, ou apenas curiosidade, trabalhos de escola. Mas elas se sentavam e liam, compravam os volumes ou doavam livros como ele também fazia. Atrás do balcão ele sentia que ainda havia esperança.
-Como você é tão bonitinha?
Fuyu estava sentadinha no balcão e Malibu segurava suas mãos, girando a menina na madeira encerada. Ela não poderia responder a essa pergunta ainda, e nem qualquer outra que aparecesse. Mas será que ela entendia?
-Eu queria ser você, Fuyu. Ter um pai como o seu, não é ótimo?
Mas eu queria mesmo ter o que você tem entre as pernas.
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02 Malibu Memories•{
01 Malibu Heart•{
prologo AH sim, e pra deixar registrado ne :B
mudei o layout, sim. Go!Go!7188 (nana ichi hatchi hatchi) :D
adoro~ (L)