Na metade da segunda série do fundamental, eu me mudei de cidade e minha nova escola ficava no alto de uma ladeira semi-vertical. Uma boa sacada dos educadores, aliás: os alunos que não iam de carro já chegavam lá mortos e não davam trabalho nenhum, ocupados demais em tentar recuperar o oxigênio do sangue.
Eu só me lembro de duas meninas dessa escola: uma, porque ela tinha uns quatorze anos e metia medo em todos os alunos da sala. Certa vez, a moça resolveu fazer umas subtrações marotas na minha primorosa coleção de lápis grafite sabiam que em Minas não se diz lápis grafite e sim lápis de escrever? Oi, pleonasmo. No nordeste, é lápis de pau. Oi, pornografia de todas as cores e modelos. Eu e minha pau-no-cuzisse infantil não hesitamos nem um segundo: falei em alto e bom tom que em vez de ficar roubando as coisas dos pequenos, ela deveria ir estudar pra passar de ano e sair do meio das crianças de nove anos, porque era uma vergonha. Ser cruel, às vezes, é necessário, embora nem sempre te mantenha os dentes presos às gengivas: a menina cresceu (como se já não fosse grande o suficiente) pra cima de mim e ia me encher de porrada se a professora não tivesse aparecido. Mas no dia seguinte ela não estava mais matriculada na escola e meus lápis foram devolvidos na diretoria. Obrigada, sofistas. Não fosse a retórica, minha vida teria sido ainda mais fodida.
Sábado meus vizinhos estavam me ofertando putz putz ruim num volume obsceno para as oito da manhã. Malditas paredes finas, morram em dor todos os mestres-de-obra responsáveis por elas. Mas a música de rave parou e começou a tocar Skank. Daí lembrei que aos oito, nove anos, eu gostava de Skank pra caralho, achava aquilo o supra-sumo da música brasileira, para total e completo desespero do meu progenitor. Então tocou Garota Nacional e na hora a lembrança da Natalie, a outra menina da segunda série de quem eu me lembro, me veio à mente.
O nome dela não se pronunciava na forma inglesa, mas com a tônica no final. E a Natalie era bonita. Mas muito bonita, mesmo. Não parecia uma menina de nove anos, mas uma mulher de vinte. Era alta, magra, tinha o cabelo liso e cheio, de um castanho-avermelhado, cortado chanel. Os olhos dela eram grandes a pareciam sempre cheios de lágrimas, o que aumentava ainda mais a beleza. Quando você conversava com a Natalie, sabia que, mais que te olhando, ela estava te enxergando. Ela realmente prestava atenção em tudo o que era dito, estava se interessando, estava sendo sua amiga. Ter sido amiga da Natalie foi me confrontar pela primeira vez com o que os psicólogos gostam de chamar de inteligência emocional.
E todo mundo achava a Natalie burra, porque ela não tinha lá o melhor desempenho acadêmico da sala. E, nossa, eu me lembro de querer passar com um rolo compressor em cima do povinho que ria dos erros ortográficos e afins que ela cometia, porque a menina era, de longe, a pessoa mais inteligente que havia dentro daquela fucking sala de segunda série.
No último dia de aula, teve uma daquelas festinhas em que cada um leva um pratinho e ligam os auto-falantes do pátio com música. Me lembro muito claramente de eu e a Natalie dançando Garota Nacional loucamente, como se o mundo fosse acabar. Daí acabou a farra e fomos receber os envelopes com as nossas provas finais. Coitada da Natalie. Foi ela abrir, ver as notas e desabar. Ela chorava e soluçava, murmurando que ia levar uma surra com a tomada da televisão quando chegasse em casa, que o pai e a mãe dela iam marcá-la toda, de novo. A levei até o banheiro pra ela lavar o rosto e ela levantou a blusa e me mostrou as costas cheias de vergões escuros. Não de uns tapas que se dá numa criança de nove anos de idade que tira notas ruins, mas de uma surra que devia ter demandado ódio de quem se ocupou de dá-la.
Eu quis ir contar pra professora. Disse que ela ia chamar a polícia. Disse que ela até podia morar na minha casa, se precisasse. Lembro dela rindo e balançando a cabeça. Ela, como eu disse, não tinha nove anos, tinha uns vinte. Essa é última lembrança que eu tenho da Natalie, o rosto vermelho e inchado de chorar, rindo, balançando a cabeça e me fazendo prometer que ia ficar quieta, porque senão ela ia apanhar mais ainda.
Eu fiquei quieta. Era fim de ano. Eu fui embora, me mudei de bairro e nunca mais vi a Natalie. Por que será que eu me lembro com tanta clareza dela? Talvez eu não devesse ter ficado quieta. Ela era linda, tinha aqueles olhos que viam de verdade; quero acreditar que alguém ia cuidar dela. Quero acreditar que alguém fez isso.
Espero que seja lá o que tenha acontecido, ela tenha continuado a saber ver as pessoas por dentro e que isso a tenha ajudado. E que ela tenha ficado ainda mais bonita. Em tudo.