Avenida Estados Unidos da América

Mar 02, 2009 19:35

Há uns anos prolongaram a Avenida Estados Unidos da América até à zona do Vale Formoso, perímetro algo malfadado da cidade até ao advento da Expo ’98, que o veio revitalizar. Lisboa parecia ser cínica para com esta sua área, quase como se de um desagradável traço de personalidade ou um sinal feio no rosto se tratasse. Lá, foi colocando bairros sociais uns atrás dos outros, ultimamente pontuados por clubes de condomínios fechados estrategicamente situados. Sente-se isso como uma tentativa de sublimação dessa área desditosa, habitualmente sem grande sucesso, embora o novo urbanismo com as suas construções mais estilizadas se tenha ali de facto instalado. O prolongamento desta avenida veio torná-la numa artéria maior da cidade, embora lhe tenha conferido também uma maior complexidade ao nível do seu próprio percurso. Quem parte da zona oriental, mais perto do rio em direcção ao centro, pode facilmente observar a plêiade de contrastes arquitectónicos e sociais ao longo do próprio viaduto, o membro acoplado à já instalada avenida que nos leva praticamente aos limites de Lisboa. Assim, nesse sentido, quando chegamos ao final do viaduto, antes de cruzar o Senhor Almirante Gago Coutinho, paramos nos semáforos que, longamente demorados, nos parecem avaliar o merecimento da passagem para a cidade mais nobre, das avenidas mais antigas como as de Alvalade, Roma e a zona do Areeiro. Ou, por outra, de chegarmos à exibição dengosa de maior poder económico das avenidas e ruas novas ali coladas ao divertimento bárbaro e institucional do Campo Pequeno: Berna, 5 de Outubro, Valbom, o senhor Duque de Saldanha.
Nesses semáforos, dizia eu, justamente nesse ponto, como em poucos outros na cidade, sinto a verdadeira gravidade da solidão. Ontem à noite, em direcção justamente à zona do Saldanha, o semáforo decide, como costuma sempre fazer, interromper-me a inércia do movimento. Fico então ali, pouco antes das dez da noite, a coçar a nuca, displicente. Tento ignorar a referida solidão e a sua inexorável gravidade, sem grande sucesso. O carro ao lado do meu é a gasóleo, o motor faz um pouco mais de ruído, o suficiente para me fazer virar o olhar na sua direcção. Lá dentro vai uma mulher, jovem ainda, uns vinte e sete, vinte e oito anos, de cabelo curto, muito escuro. Procura algo dentro de uns cadernos que vai erguendo e que leva em cima do banco do pendura. A luz incidente do tecto do veículo ilumina-lhe o rosto e o olhar. Olhos claros, azuis parecem-me. O rosto é um pouco largo, anguloso, bonito, alguma sinuosidade nos físicos. Veste de preto e branco, de modo formal. Ela encontra finalmente o que procurava e coloca o famigerado objecto em baixo, em frente ao manípulo das mudanças - parece-me. Assim não se esquecerá de o levar consigo. Não consigo parar de olhá-la e, durante estes instantes, surge-me uma vontade imensa de contacto. São breves segundos, mas é preciso fazer algo para estabelecer ligação, inaugurar um vínculo, mesmo que banal, dizer-lhe seja o que for.
Mas não. Não há nada e o sinal verde cai. O semáforo, agente crítico e avaliador, permite-nos a passagem e ambos seguimos, alívio no travão, embraiagem, primeira velocidade, acelerador. Com o carro em movimento, não me lembro mais de tudo isto. Seguimos lado a lado por algumas dezenas de metros, até que o carro a gasóleo vira para a direita, Alvalade, que talvez derive do árabe “Al Balade”, local habitado e murado. Longe do deserto que a rodeia.

lisboa

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