Valete - BFF

Sep 21, 2019 23:43


O Valete lançou uma música chamada “BFF”.

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Isto dividiu as pessoas do rap. Alguns acham que está bem conseguido, que é uma obra de arte (grupo no qual eu me insiro), outros apontam a violência doméstica, que é misógino e, nos dias em que correm, a falta de ideias para abordar este tema de outra forma. O videoclip ajudou a transmitir essa realidade visualmente o que faz muito mais real, e tem algumas imagens, para alguns, chocantes. Para muitos, é quase um filme.

Não vou falar da música em termos técnicos, da letra, do instrumental e do videoclip. Isso já foi debatido - gostei particularmente desta análise, toca em todos os pontos essenciais.

Vamos falar, sim, de distinguir entre o artista e a música.

A música fala de um gajo que é violento, ciumento, obsessivo e cuja namorada o está a trair com o melhor amigo dele. Pega numa arma e despeja todas as razões para justificar matar quer a namorada, quer o melhor amigo, naquele estado de emocional de engano e muita revolta. No fim do vídeo, é só um pesadelo, mas a traição confirma-se para o espectador.

Sonhar ou fantasiar e a realidade são coisas diferentes. Na realidade, se calhar o gajo desmanchava-se a chorar quando soubesse que a traição era verdadeira e mudava de país só para fugir do coração destroçado. Ou então o gajo tinha propensão para violência e o sonho cumpria-se. Nunca saberemos.

Não me parece que o Valete esteja a recomendar este tipo de comportamento. Apenas bebe nos factos reais - mulheres que são vítimas de violência doméstica, já conta com 19 mulheres mortas em Portugal só este ano - e escreveu uma história da perspectiva do agressor. A história é violenta, cheia de preconceito, cheia de misoginia e desejo de matar? É. Mas é, unicamente, uma história. Cabe à sociedade - justiça, educação, associações, etc - fazer cumprir a lei e educar. São duas coisas totalmente distintas.

Ele tem um outro som, Mulheres da Minha Vida, em que conta a história de um homem que é pai e marido, perdeu o emprego nos tempos da crise e, com o passar do tempo, a filha e a mulher perderam todo o amor e respeito por ele. Ele sentia-se como falhado e um estorvo e, no fim da música, suicidou-se. Se fizesse um videoclip (como fez com o BFF), teria muito mais impacto e chamava mais atenção.

O Valete tem outras músicas em que é claramente a favor das mulheres: Mulher que Deus Amou, A Mentira do Vosso Amor, etc.

A música é uma storytelling que não é diferente das outras músicas de storytelling. É uma história contada de um ponto de vista. Immortal Technique - Dance With The Devil conta a história de um gajo que era drogado e viola a própria mãe. Soul Position - No Excuse for Lovin’ conta a história de uma mulher buscando o seu amor e acabou por ser violada - desta vez, do ponto de vista da mulher. Cage - I Never Knew You conta a história de um não-amor doentio que resulta na morte dela (parecida com uma série chamada “You”). Aliás, vai mais além, o Cage mais o Kid Cudi (com produção do Shia LaBeouf, what else?) fizeram uma música / curta-metragem chama “Maniac” em que Cage e o Kid Cudi foram matar uma série de pessoas sem razão alguma.

Estes artistas foram promover e incitar à violência e a matar gente? Não. Eles preocuparam-se só em fazer boa música.

O Valete não se coaduna esse tipo de comportamento e não tem controlo sobre a sua audiência. Até escrevi sobre isso há 8 anos. Citando a mim própria, “Como em qualquer forma de comunicação, este processo inclui aquilo que o artista pretendia transmitir, aquilo que ele de facto transmitiu e aquilo que o ouvinte interpretou.” Qualquer assunto ou tema que seja, a regra mantém-se.

Normalmente ele dá uma “lição de moral” em certas músicas. E esta faixa dá, de certa forma, não da vítima, mas do agressor. Mas então, ele está confinado a dar “lições de moral” para sempre? Não tem liberdade para escolher que assuntos aborda e tem que estar limitado na forma como escreve? O Valete afirmou, numa entrevista, que está apaixonado por cinema. Ele escreve, vai ao pormenor, e tal é perfeito para fazer estes tipo de curta-metragem.

O Hip Hop deve ser um espelho da sociedade, para bem ou mal, não deveria ser filtrado para ser “politicamente correcto” para não ofender ninguém. O rap deu-nos a possibilidade de escolher a quem nós ouvimos, e há muita oferta - especialmente, os artistas da nova escola estão direccionados para o público mais jovem.

Coloquei a várias pessoas que não gostaram do BFF algumas questões: e se invertesse o género a todas as pessoas já era mais aceitável? Essencialmente responderam-me que a violência e a misoginia não são a solução. E eu concordo, mas acho que o videoclip não está a apresentá-los como uma solução. Levo as perguntas mais longe e deixo-as para as pessoas. E se o artista fosse uma mulher a fazê-lo? E se fosse um crime de ódio? Como o rap é muito misógino e homofóbico, e se mudasse para o metal? E se, em vez de fazer uma música, escrevesse um livro ou pintasse um quadro? Onde está o limite artístico?

Mais uma vez: é preciso separar o autor da obra. A obra deve ser avaliada sem olhar a quem é o seu autor. Durante a obra, o artista desaparece. Citando Umberto Eco, “The author should die (…) So as not to trouble the path of the text”.  Quem escreve uma história, o autor, morre e começa a viver nas suas personagens, no que pensam, no que sentem, como agem, como enfrentam os seus obstáculos; mesmo que o artista discorde absolutamente. O artista tem que morrer para que as personagens possam viver.

Provavelmente não vou mudar de opinião de quem não gosta da música, mas venho oferecer uma nova visão das coisas. Then again, já saíram textos de notícias até humorísticas, portanto, não estou a dar nenhuma novidade.

Estejam à vontade para discordar.

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Disclaimer: eu tenho disfasia. Vou tentar responder aos eventuais comentários, mas não sei se vou conseguir. Tentei abordar um assunto sensível, expliquei o meu ponto de vista o mais claramente possível e, se deixar algum aspecto que fique de fora, peço desculpa.

valete, opinião

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