[Hiphop] Dois artigos publicados no XL RAP

Sep 01, 2006 14:03

O Papel do DJ

All You Gotta Do Is Listen To The DJ

And Put On the Record Everything That He Plays

Não é novidade nenhuma que o papel do DJ, no Hip Hop, está a ficar cada vez mais secundário.

Não me refiro, claro está, ao papel de gira discos, nesse aspecto o DJ continua em alta, como se pode ver pela frenética actividade de DJs como Madflava, Overule, NelAssassin, Cruzfader. Mas essa actividade dificilmente se pode considerar a mesma dos DJs pioneiros do movimento, nomeadamente Afrika Bambaataa e Kool DJ Herc. Estes DJs tiveram um papel extremamente importante no surgimento da nossa cultura não por produzirem, não por fazerem mixtapes, não por fazerem scratch em faixas de mcs, mas por serem a verdadeira alma da festa. Kool DJ Herc ainda hoje considera a sua grande fonte de adrenalina descobrir talentos e ser o primeiro a divulgá-los. É grande motivo de orgulho para si poder apontar um hit de Hip Hop, Jazz, R’n’B ou Soul nos tops dos charts e dizer “Estão a ver este artista famoso? Eu já tinha passado esta faixa nas festas há seis meses atrás”.

E por isto é que os DJs eram a essência da festa e muito mais importantes do que os mcs, back in the day. Quando se ia ouvir um DJ, ia-se na expectativa de se vir surpreendido, entusiasmado e satisfeito. O DJ não se limitava a passar hits do momento, o DJ antecipava-os. E cada DJ tinha o seu estilo, alguns DJs como Afrika preferiam estender os limites da sua selecção aos vários estilos de música, enquanto Kool Herc tirava mais prazer da descoberta de novos talentos.

Parece-me que esta individualidade se veio a perder, por motivos que ainda não compreendi bem. Não é que os DJs em si tenham desistido de ter um estilo próprio, afinal de contas dentro do Hip Hop temos Dj com queda para o R’n’B (Cruzfader), outros para o Drum’n’Bass (Spot), outros para o Old School (Madkutz), outros que são conhecidos pela maestria nos pratos, no domínio da técnica (NelAssassin), etc. Peço desculpa se há outros exemplos melhores ou outros DJs mais dignos de referência, mas dentro do DJing não conheço tudo do trabalho de cada um e falo apenas com base no que conheço.

Talvez o problema esteja no público. É uma teoria que faz muito mais sentido, visto que o público hiphopiano se habituou a festas de 5 euros com um cartaz cheio de mcs. Tornou-se na fórmula seguida para organizar uma festa e o único formato aceite pelo público. Assim, como pode um DJ brilhar, sem a bengala de um mc para o introduzir na festa?

Claro que o papel do DJ não tem necessariamente de se manter o mesmo desde o início da cultura até ao fim dos tempos, desde que a sua presença no Hip Hop se consiga reinventar como tem acontecido com os mcs. Isto é importante quer para o DJing quer para o Hip Hop, pois com a total separação dos dois as perdas para ambos os lados são significativas.

Museu do Hiphop

Eis a mais recente manifestação da nossa cultura: um museu com a nossa história. É apenas mais uma prova, de entre muitas, que somos de facto mais do que um estilo de música e mais do que quatro vertentes que alguém um dia se lembrou de juntar e chamar Hip Hop.

Mas parece que um político qualquer do Bronx, Larry Seabrook, considera preferível que o museu não abranja o Gangsta rap.

Toda a gente sabe o quão ridícula é esta posição. O Gangsta Rap não é, de forma alguma, a vertente musical dentro do Hip Hop que eu mais aprecio e será, definitivamente, aquele com que menos me identifico. Mas ignorar deliberadamente a sua presença num museu cujo objecto é o Hip Hop? Como pode isto fazer sentido?

Antes de mais, há que definir o que é que o museu pretende. A sua exposição refere-se à cultura ou ao estilo de música?

Caso se refira ao Hip Hop, estilo de música, então não deverá ser um Museu de Hip Hop, mas sim um Museu do Rap. Se assim for, como é que decidimos o que é se inclui o que é que se exclui?

Existem tantos estilos de rap que penso ser virtualmente impossível encontrar um critério justo. Partamos do princípio que o critério é a violência das rimas. Por violento podemos tomar tudo aquilo que fale em actividades ilegais, tais como: tráfico e consumo de drogas, assassínio, prostituição, assaltos. Ponhamos de parte os óbvios ícones deste estilo: 2Pac, Notorious BIG, Mobb Deep, M.O.P., todos os rappers de Queens Bridge, Bronx, e todos os bairros problemáticos dos Estados Unidos. Excluímos ainda a G-Unit, a Murder Inc, os rappers mais famosos dos últimos anos, entre os quais Eminem, Dr. Dre, The Game, quase toda a carreira dos Wu-Tang e dos Outkast. Todos estes rappers, no seu conjunto, representam a origem e ascensão da música rap, do intervencionismo à chamada de atenção para a discriminação, da saída dos bairros para uma vida de esbanjamento, de um rap de pretos para pretos para um rap de todos para todos.

Isto só para começar. Mas não será também violenta a forma como certos rappers falam de golpes de estado, assassinar ministros e presidentes, bater noutros rappers com quem têm beefs, insultar minorias étnicas como os homossexuais, os emigrantes, os latinos, etc.? São formas de violência reconhecidas como tal na própria constituição. Sendo assim, mais vale começarmos a nomear que rappers é que podemos manter. Meia dúzia de músicas de artistas como Linkin Park?

É que nem KRS-One, Immortal Tecnhique ou Mos Def escapam a tal critério. Cá para mim, o museu vai ser sobre Dose One e Sole, que ninguém percebe, e talvez Pete Rock e RJD2 porque só fazem música instrumental.

Esta forma de selecção é mais do que ridícula.

Mas vejamos agora as coisas de outro ângulo. Partamos do princípio que o museu é sobre Hip Hop, a cultura. O critério seria então muito mais claro e evidente. Nem todos os rappers são mcs e nem todo o rap é Hip Hop. Mas mesmo assim, poderiam ser incluidos artistas não Hip Hop que no entanto tiveram um papel na evolução da cultura, para bem ou para mal.

Assim, 2Pac e Notorious BIG teriam o seu lugar assegurado, porque ao criarem o Gangsta Rap tinham em mente a tomada de poder dos ghettos desprezados, das pessoas a quem eram recusados os mais básicos direitos humanos, das pessoas que nem sequer eram vistas como seres humanos. Claro que facilmente se passa de 8 a 80 e se exagera uma causa de tal forma que deixa de fazer sentido, como acabou por acontecer. Mas o princípio está lá e é importante: a igualdade de oportunidades independentemente da raça.

Por outro lado, este critério apresenta-nos os artistas como 50 Cent tal como eles são: um produto fabricado para as massas, sem história nem importância no Hip Hop, parasitas que utilizaram a cultura já existente para atingir os seus objectivos pessoais de fazer muito, muito dinheiro. Já o Eminem e Dr. Dre podem ser apresentados com o respeito que merecem e a respectiva controvérsia - ambos tiveram um papel importante na divulgação e abertura da cultura Hip Hop.

Outros tipos de Hip Hop que entretanto foram tomando o seu caminho, independente da cultura, terão também o seu lugar, estilos como o Crunk, o Hyphy, até mesmo o Dance Hall; ou Hip Hop que ainda é Hip Hop mas que se estica na sua sonoridade por onde quer e pode, tais como indie rap (mais especificamente, Def Jux, Anticon), Mash, ou as misturas de artistas como Cut Chemist, DJ Shadow, Marcelo D2, Bubba Sparxxx (com o seu mais recente cd totalmente country), Gnarls Barkley, etc. Também importante é a incursão por sonoridades já existentes, como o R’n’B, o Drum’n’Bass, o Soul e o Funk.

Para além da música, temos as outras vertentes da cultura Hip Hop, quer sejam as cinco vertentes da Zulu Nation ou as nove do Temple of Hip Hop, e ainda aquilo a que ambas as entidades chamam o Conhecimento (Knowledge). KRS-One escreveu uma vez o Hip Hop era a realização do sonho de Martin Luther King, o sonho de harmonia entre as pessoas e as culturas independentemente de raça ou religião. E de facto pode-se dizer que sim, pois não há outra cultura que una tantas pessoas e tão diferentes, não há outra nação tão bem sucedida na ultrapassagem das diferenças individuais como a nossa Nação Hip Hop! E isto só acontece porque as pessoas são livres de pensar e dizer o que bem lhes apetecer, seja politicamente correcto ou não, e cabe aos ouvintes escolher o que querem ouvir e que posições e ideais defender. A liberdade é aquela que não existe na sociedade em geral.

Haverá justificação mais necessária do que esta para a construção de um Museu?

Verdadeiramente espantoso seria que no fim de tudo uma cultura com este nível de liberdade de expressão fosse censurada!

Nicolau para o XL RAP

xl rap, escrita, opinião

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