Aug 29, 2003 11:32
>>>Peço desculpa a quem não faça o mínimo sentido o que eu vou tentar dizer (prevejo que sejam muitos) mas eu TENHO MESMO que escrever isto. E peço que tenham a sensibilidade de tentar ver as coisas do meu ponto de vista, depois se quiserem discordar, fachavôr.
>>>Ontem assisti a um concerto do José Cid. Para todas as pessoas da minha geração, as primeiras ideias que ocorrem ao ouvirmos este nome são uns óculos daqueles que enegrecem com a luz, um cabelo estranho mas verdadeiro e um olho a olhar o horizonte por detrás dum piano.
>>>Pois eu aconselho a todos uma revisão na matéria dada. Experimentem reescutar as músicas deste senhor. Como eu fiz ontem. Ele tem verdadeiras pérolas no repertório. Para além de que, mas isso penso ser um dado adquirido, é um regalo ouvi-lo ao piano. O homem domina. Toca bem até dizer chega.
>>>O concerto de ontem foi uma experiência profundamente marcante para mim. Muito mais do que alguma vez eu poderia supôr. Foi uma experiência que ultrapassou largamente o simples fruir de momentos musicais. Quase um exemplo, uma lição de vida. E eu passo a explicar porquê.
>>>O José Cid é um incompreendido. Mais um daqueles nomes (tantos!) que são injustiçados por tudo e por todos. O José Cid é um excelente pianista. Escreveu várias canções que são autênticos clássicos da música portuguesa e parece que ninguém se lembra disso. É mais um típico caso de quem, assim que morrer, vai finalmente ver (salvo seja) reconhecido o seu valor - não se esqueçam do que aqui estou a escrever - por caras e caras conhecidas que de repente aparecem na televisão a dizer que o admiravam muito e que sempre gostaram muito dele e das suas músicas.
>>>Depois todos nós vamos perceber que já é tarde. Que não vai ser cantada mais nenhuma canção acompanhada ao piano. E, acima de tudo, que já não vamos ter hipótese nenhuma de o aplaudir pelo menos uma vez enquanto ele estiver num palco. Para que ele saiba que há quem o escute e quem goste do que ouve. Para que seja reconhecido e que nunca ponha em causa que é bom e que vale a pena continuar.
>>>Quem eu vi em palco ontem, é o José Cid da minha infência com mais quilos em cima, seguramente mais rugas, mas exactamente com a mesma postura perante o público - escasso - que o escutava. O mesmo José Cid que escreveu êxitos atrás de êxitos nos anos ´70 e ´80.
>>>Um José Cid altamente profissional. Que respeita o público e que o faz render perante a franqueza com que toca. Um José Cid que conversa com quem o escuta entre as músicas (há quanto tempo não via um cantor ter este gesto de respeito?) para explicar a música que se segue.
>>>Alguém que sabe perfeitamente que não tem tempo de antena nas rádios, que não é convidado para os programas de televisão, que é alvo de piadas fáceis e de mau gosto pela maior parte da população com menos de quarenta anos e que ainda assim, esteve em palco com a maior dignidade a provar que tem valor e que nem sempre o que se diz corresponde à realidade.
>>>Neste mês de Agosto, fez 15 concertos (quantos concertos terão feito, por exemplo, os Delfins - esses grandes palhaços - este Agosto?) provavelmente todos em terrinhas pequenas como aquela. Com pouca gente como ontem. Em palcos pequenos e com poucas condições. Quatro pessoas em palco para além dele, não são precisas mais. Tenho a certeza que em todos estes 15 concerto, as pessoas voltaram para casa mais felizes.
>>>Eu, se estivesse no lugar dele, provavelmente já teria desistido há muito. Farto por não darem valor ao que ele faz. Farto por, depois de tantos anos, constatar que o João Pedro Pais é mais popular que ele, vende mais que ele e factura seguramente muito mais que ele.
>>>Queria ter capacidade para vos escrever melhor e conseguir explicar tudo o que senti ontem ao olhar para aquele palco. Aquilo é ser profissional. Aquilo é acreditar no que se faz. No trabalho que se produz. Aquilo é ser persistente e não desistir perante as (muitas) adversidades. Precisamente por tudo isso, ontem vivi momentos comoventes no melhor dos sentidos, e não "por pena do artista" como alguns podem pensar.
>>>Nem sempre é mau olharmos para trás. Perceber quem ficou por lá. De quem nos esquecemos sem que o mereça. E depois, cantar como ele mesmo canta: "Vem viver a vida amor, que o tempo que passou não volta não. Sonhos, dum tempo que passou, mas para nós ficou esta canção".
>>>Por muito que me tentem provar o contrário e por muito pouco "in" que isto soe, garanto-vos: é ainda (e será sempre seguramente) muito bom ouvir esta música ao vivo abraçado a quem amamos e sabemos amar-nos também. Eu sei porque o fiz ontem, e porque vi à minha volta muitas cabeças femininas a aconchegarem-se nos ombros dos respectivos. E foi bonito.
"NAQUELE TEMPO
TU VINHAS DE NOITE
Á PROCURA DE AMOR
E EU FUMANDO UM CIGARRO
ESPERAVA POR TI
QUANDO CHEGAVAS
ABRIAS A PORTA SEM ME AVISAR
PELA NOITE FORA
FICAVAS ABRAÇADA A MIM
NA CABANA JUNTO Á PRAIA
ENTRE AS DUNAS E OS CANAVIAIS
SÓ O VENTO E O MAR
E AS GAIVOTAS FALAM DESSE AMOR
TODOS OS ANOS
EU VOLTO EM AGOSTO
AO MESMO LUGAR
JÁ UMA ERA
COBRIU AS JANELAS DO QUARTO
DAVA DEZ ANOS
DE VIDA PARA TE VER VOLTAR
POSSO ESTAR FARTO
DE TUDO MAS NUNCA ME AFASTO"
NA CABANA, José Cid