Anything about Rio Grande do Sul II

Dec 28, 2010 19:08

E aqui vem a segunda parte, ainda mais histórica \o/

(e espero que meu amigo anônimo secreto esteja gostando =~~~~)



Prelúdio para Salada Mista: Cupuaçu

Como RJ tinha dito (mas provavelmente era mentira) que não ia mais trapacear, muitos outros decidiram seguir essa nova onda. Era quase como se fosse uma nova regra para o jogo: “é proibido trapacear”.

-Pra você ver como é difícil conviver com essa menina - Paulo disse para RS, acendendo um cigarro - Ela nem precisa pensar pra trapacear nas coisas. Já é reflexo.

-Eu estou cansado de saber disso - RS respondeu - E de saber que você só reclama quando te atrapalha.

Paulo sorriu, soltando a fumaça sem responder. Fazia pouco tempo que ele tinha começado a fumar e, na opinião de Rio Grande do Sul, nem estava fazendo isso direito. Havia algo no jeito como ele segurava o cigarro, ou como estava consumindo mais caixas que qualquer iniciante normal, que não tinha nada a ver com vício. Por mais que estivessem crescendo, todos eles, o cigarro de Paulo ainda parecia mais com uma rebeldia adolescente do que um prazer adulto.

De qualquer forma, a suposta ausência de trapaças estava deixando o jogo mais interessante. A primeira combinação tinha sido Rio Grande do Norte e Rondônia (o que nunca tinha acontecido antes), e então Minas e Espiríto Santo (o que já tinha acontecido algumas vezes), aí Amapá e Tocantins e depois Mato Grosso do Sul e Roraima.

Paraná tinha acabado de propor que os três (ele, Paulo e RS) se juntassem à corrente que estava cruzando os dedos e torcendo para Bahia e Catarina se tirarem, quando Amazonas escolheu Espírito Santo.

A maioria do pessoal ficou muito espantada (a maioria, porque Maranhão realmente não se importava com esse tipo de drama), e ES enrubesceu até a raiz do cabelo.

-Muito bem - Bahia estava dizendo para Amazonas (ela também não parecia muito espantada) - E o que vai ser?

Amazonas sorriu, mordeu de leve o lábio inferior, fez um misteriozinho e então disse:

-Cupuaçu.

Bahia descobriu os olhos dela e, assim que Amazonas viu que tinha tirado ES, ela também ficou levemente espantada.

-Cupuaçu não é nada de mal - Amazonas disse para Minas - Quer que eu mostre primeiro?

Minas fez que não, o rosto muito triste, e a vergonha de ES virou irritação:

-Bom, ele não tem nada com isso, certo? Cadê o meu Cupuaçu?

Amazonas hesitou mais alguns segundos, mas acabou segurando o rosto de ES e se inclinou (ela era mais alta) até encostar o nariz no dele.

Todos tinham silenciado para ver o que seria o Cupuaçu - que não era nada de mal - e RS, particularmente, estava muito feliz que a estréia não fosse com Paulo. Chega desse cara querer se meter em tudo.

Então Amazonas beijou a boca de Espírito Santo.

A explosão de barulho que houve depois disso foi tão alta, gritos e uivos e batidas de palmas, que AM e ES se afastaram como se tivessem levado um choque. Amazonas olhou para os lados, sem saber se tinha feito algo errado (“não, minha linda”, Bahia respondeu “mas você não pode chegar dando um Cupuaçu desses sem avisar ninguém!”), Paulo e RJ começaram a discutir (porque, segundo ela, o primeiro Cupuaçu tinha que ser dos dois e ele perdera a chance), Minas e ES mal conseguiam se olhar e Catarina…

…Catarina tinha segurado sua mão. Rio Grande do Sul não tinha percebido que ela tinha se aproximado, mas sentiu os dedos finos se fechando em torno dos seus. Então, no meio daquela bagunça (e Piauí estava estremecendo cada vez que Maranhão falava que o próximo Cupuaçu seria o dos dois), RS se perguntou que mal haveria em beijar Catarina agora.

Ali, na circunferência do espetáculo, sem que ninguém mais estivesse olhando. Ele sabia que a brincadeira não era essa, mas, bom, beijar Catarina não seria uma brincadeira. Seria, na verdade, o próximo passo. E Cupuaçu era isso, era o próximo passo.

Mas, pensando melhor, Cupuaçu não era só isso. Ou talvez não fosse tudo isso, Cupuaçu era o próximo passo, sim, mas um passo natural, um passo grande, mas não muito, um passo pequeno, mas nem tanto.

Cupuaçu era um beijo na boca, lábios se encostando, as línguas ainda bem guardadas porque, depois de todo aquele escândalo que todo mundo estava fazendo, ainda parecia que seria um bom tempo até estarem prontos pra isso.

Por isso, porque Cupuaçu era um marco na jornada mas ainda assim era só um passo, RS se inclinou até encostar a boca na orelha de Catarina:

-Daqui a pouco é o nosso - ele disse, sentindo o cheiro do cabelo dela - Porque eu nunca disse que não ia trapacear.

Com a chegada do Cupuaçu, RS teve que esperar sentado (literalmente) enquanto RJ e Paulo trocavam um, ES e Minas outro, Minas e ES mais um, Bahia e Pernambuco (e ele continuava reclamando), Maranhão e Piauí, enfim. Quando finalmente RS conseguiu seu lugar na fila, ele já estava preocupado de que Catarina não quisesse mais, porém ela sorriu e fechou os olhos.

Cupuaçu não era, realmente, nada de mal.

Prelúdio para Salada Mista II: Pinha

No próximo encontro, e RS percebeu antes mesmo de chegar no círculo, uma novidade muito grande tinha ocorrido. Dava pra perceber só pela disposição física do pessoal, quase ninguém estava sentado, Catarina estava roendo as unhas (e ela nunca fazia isso), Bahia estava bem afastada do centro do círculo (e normalmente era ela quem conduzia o jogo, a não ser quando estava ocupada não trapaceando e tirando PE).

Até Maranhão parecia tenso (e provavelmente foi isso o que mais preocupou RS).

Ele se aproximou de Paulo e Paraná, que estavam de mãos dadas. Ia perguntar o que estava acontecendo quando percebeu que o jogo já tinha começado.

-Vocês não me esperaram!

Paulo olhou para ele, soltando a fumaça do cigarro, e então se aproximou para cochichar em seu ouvido. E agora que mais ninguém ali era criança, que todos os gestos e toques transbordavam de significado, ter a boca de Paulo perto de seu ouvido fez com que os pêlos da nuca de RS se arrepiassem.

-A Rio não quis esperar. Foi a primeira vez que ela chegou antes de todo mundo.

-Sei - RS murmurou, afastando-se dele - E, como ela ainda manda na gente, ninguém-

Paulo abanou a cabeça, voltando a colocar o cigarro na boca:

-Ela chegou antes que todo mundo a gente. Mas ele chegou antes.

Paraná lhes dirigiu um olhar irritado, como que mandando os dois calarem a boca, e Rio Grande do Sul voltou a olhar para o centro do círculo.

Foi a primeira vez que ele viu Brasília.

-Nossa, então é verdade? - não teve escolha a não ser se inclinar e cochichar no ouvido de Paulo - Ele vai mesmo ser- a RJ não é mais-?

-É isso aí - Paulo cochichou de volta, e agora os dois estavam praticamente abraçados para não incomodar Paraná e, principalmente, para RJ não escutar - Ela ficou louca. Aí chamou ele pra uma Pêra.

-Eu estou avisando - Paraná disse, os olhos estreitos.

Paulo colocou o cigarro na boca e ergueu a mão num sinal de rendição. RS mesmo não tinha a menor intenção de continuar a conversa, afastou-se um pouco dos dois de forma a encontrar um ponto de observação melhor.

Até que conseguiu ver.

No centro do círculo, alguém tinha arranjado uma mesa (porque esse pessoal faz milagre quando uma situação dramática assim exige) e duas cadeiras. RJ estava sentada em uma, o cabelo preso pra trás, rostinho suado e lábios cerrados. À sua frente estava Brasília, um pouco mais novo, um pouco mais desconfortável, um pouco menos suado.

Rio Grande do Sul se emocionou quando o viu.

Ele nunca contou para ninguém, nunca mais pensou no assunto, mas se emocionou. Porque ele ainda tinha os seus planos, ainda tinha aqueles sonhos secretos - desenvolvidos pouco depois das primeiras Uvas e bem antes dos primeiros Cupuaçus - mas aquilo ainda era ele, o dar de mãos com Rio Grande do Norte, todos os olhos que Bahia tinha tampado, as trapaças de Minas e Espírito Santo, ele era tudo aquilo, e agora era aquele piá mais novo entrando no meio da brincadeira, subindo num ônibus em movimento e segurando a mão de Rio de Janeiro, que estava ali desde sempre, ele era aquela súbita volta da Pêra, as antigas alianças, mas também era a passagem do tempo, era um passo atrás do outro, RJ e Brasília, Rio Grande do Sul, mãos apertadas e rostos duros, duas cadeiras e uma mesa.

Porque aquela Pêra era uma queda-de-braço.

Ninguém mais se mexia, nenhum gesto brusco, mas RS não precisava ler pensamentos para saber quem ia ganhar, quem todo mundo sabia que ia ganhar.

Quando o braço de RJ cedeu e ela gemeu, RS esperou alguma coisa. Um palavrão (agora que já eram mais velhos, falavam palavrões o tempo todo). RJ virar a mesa. Um soco no nariz de alguém.

Alguma coisa.

Mas RJ respirou fundo, massageou o próprio braço e se levantou. Ela andou até Paulo, pegou o cigarro de sua boca e continuou andando, sem se afastar demais, até que parou nos limites do círculo.

Enquanto ela fumava devagar, de costas para todos mas sem ir embora, sem nunca ir embora, os outros vinte e cinco estados trocaram olhares entre si.

Até que, pouco a pouco, os olhares convergiram para Brasília.

Ele respirou fundo, afastando a cadeira para ficar de pé. Então, sem vacilar, sem engasgar ou enrubescer, ele correu os olhos em volta:

-Eu sou Brasília - disse e, não fosse a força desnecessária com que apertava a beirada da mesa, RS diria que ele estava perfeitamente bem - É ótimo conhecer vocês. Eu… obrigado por me deixarem brincar também.

Houve um silêncio de dois segundos após suas palavras, então Goiás passou o braço pelos ombros dele e o puxou para a circunferência. Minas e Tocantins tiraram as cadeiras do centro, Mato Grosso do Sul livrou-se da mesa e Bahia voltou para o seu posto.

-Bom, pessoal - até ela precisou forçar um sorriso - quem vai ser agora?

RN foi lá pra frente e a brincadeira seguiu seu rumo, Maçãs, Cupuaçus, ocasionais Cafés com Leite, Pernambuco reclamando, Minas e ES trapaceando, tudo muito normal e natural.

Mas RJ não fez nada além de fumar.

E ninguém escolheu Brasília.

-Eu preciso falar com vocês.

Como RS e Catarina estavam quietos até essa hora, soava até engraçado o aviso de Goiás. Por alguma razão, os três tinham sido os primeiros a chegarem no círculo, então não havia a menor necessidade daquela introdução, mas, mesmo assim, Goiás olhava para trás como que tentando evitar ser ouvido.

-Pode falar - Catarina disse, curiosa - Aconteceu alguma coisa?

-Eu quero que vocês trapaceiem - ele disse - Na verdade, nem precisa ser os dois. Só um já serve.

-Trapacear pra quê?

-Pra ficar com o Brasília. Até agora, ele só recebeu aquela Pêra da Rio.

De novo esse apelido, RS pensou, torcendo a boca. Será que esse povo achava que o único Rio do país era o de Janeiro?

Ele era o único que se irritava com isso?

-Francamente, Goiás - Catarina franziu a testa - Por que você mesmo não trapaceia?

-Porque aí ele vai saber que é trapaça. E o ponto é esse, ele não pode saber.

-E por que é que tem que ser justo a gente?

-Bom, alguém tem que ser, certo? - Goiás estava começando a se irritar com Catarina - E o outro ponto é que tem que ser alguém longe. Pra ele se sentir parte da família.

Catarina fez uma careta, e RS mordeu o lábio inferior.

Era… engraçado isso, Goiás pedir logo pra eles. Como se o fato de estar com ele, Rio Grande do Sul, pudesse aumentar a identidade nacional de alguém.

Era uma idéia engraçada.

E, na verdade, RS também achou a idéia bonita, ficou com pena de Brasília, mas ainda não sabia como lidar com o ciúme de Catarina - não sabia nem se queria lidar com o ciúme dela. Gostava dela, esse era um ponto, e gostava de ir com calma, primeiro uma Uva, depois um Cupuaçu, depois… depois o que viesse depois. Não precisava de mais esse drama na vida.

-O que vocês estão falando? - Paraná perguntou, sentando-se ao lado de Catarina e na frente de Goiás.

-O Brasília está ficando meio sozinho - Goiás respondeu, apertando a base do nariz - Alguém tinha que trapacear pra ficar com ele.

Paraná pensou um pouco no assunto, até que deu de ombros.

-Tudo bem. Eu trapaceio.

Goiás ficou tão feliz que agarrou o rosto dele e lhe deu um beijo na testa:

-Muito obrigado, cara, você é ótimo! Qualquer coisa que precisar, é só me falar! - e voltou para o seu lugar, cantarolando uma musiquinha sertaneja.

Depois que ele se afastou, Catarina perguntou:

-E o que é que você vai fazer? Você ao menos sabe reconhecer o cara?

-Claro que sei. E não é da sua conta.

Os dois começaram a discutir, e RS acabou se distraindo. Não acreditava que Paraná fosse fazer qualquer coisa muito drástica - afinal de contas, ele tinha enrubescido só com o rompante de gratidão de Goiás - mas era interessante também que ele não entrasse em nenhum conflito interno, que fosse tão confiante de sua própria identidade, a ponto de se oferecer para resolver os dramas alheios.

Não sei. Que ele fosse assim tão Brasil.

Depois que todos chegaram (nova regra recém-instituída: pro jogo começar, todo mundo tem que ter chegado), Bahia foi para o centro e Paraná ficou de pé.

-Eu quero começar - ele disse, levantando a mão. Isso fez Paulo franzir a testa:

-O que você tá aprontando, Paraná? Você nunca começa.

-Hoje me deu vontade. - ele respondeu, simplesmente, parando na frente de Bahia. Deve ter sido nessa hora que ele falou o que queria fazer, com quem queria fazer, mas foi tão discreto que mais ninguém percebeu.

Paulo não respondeu, voltando a fumar (e agora seu vício era bem mais convincente e irritante), e Bahia começou a girar Paraná.

Uma, duas, três voltas até. Eles estavam enrolando tanto que RS achou mais divertido olhar para Brasília, como ele ainda era um piázinho quieto e sério, e como não tinha a menor esperança de ser escolhido.

Então Paraná parou com o dedo apontado para ele.

Brasília arregalou os olhos e não moveu mais nenhum músculo, sentado como estava, as costas perfeitamente retas.

-E o que vai ser? - Bahia perguntou, diante dos olhares surpresos e divertidos dos outros estados.

-Vai ser uma Pinha - Paraná respondeu, sorrindo com o canto dos lábios - Eu acabei de inventar.

Bahia descobriu seus olhos, mas Brasília continuava sentado, perdido, sem saber o que fazer.

RS deixou escapar um sorriso, pensando em como ele mesmo teria ficado péssimo se RN tivesse reagido assim lá no seu primeiro dia.

-Você tem que ficar de pé - Paraná disse, estendendo a mão para ele. Como mesmo assim Brasília não se mexeu, Paraná olhou em volta, hesitante, e então se agachou à sua frente - Você não quer a minha Pinha?

Seu rosto estava bem perto do de Brasília e, bom, Paraná era muito bonito.

Brasília piscou algumas vezes, o rosto vermelho, e então disse baixinho:

-Quero.

Os olhos de Paraná sorriram e ele segurou o rosto de Brasília entre suas mãos, aproximando seu rosto até que as testas se encostaram. Então ele chegou ainda mais perto, até a ponta de seu nariz tocar a face de Brasília e vice-versa.

As bocas estavam quase se encostando quando Paraná disse, de olhos fechados:

-Seja bem-vindo, Brasília. Que bom que você chegou.

Alguém começou a aplaudir nessa hora e então de repente todos batiam palma, até RJ. Paraná tentou se afastar, mas Brasília segurou seu rosto e ele quase caiu.

-Pensa numa Pinha que vai virar um Cupuaçu! - Pernambuco riu e dessa vez Paraná enrubesceu também, mas Brasília não o beijou e os dois ficaram nessa posição por mais um bom tempo, até depois que alguém arranjou um violão e então todo aquele jogo virou uma competição de música e dança e bagunça e barulho.

Foi nesse dia que Brasília tirou o atraso, recebendo Pêras, Uvas, Maçãs, Cafés, Leites, Cupuaçus (esse só um, de Roraima) e Rio Grande do Sul não entendeu de primeira o que, exatamente, era uma Pinha. Porque ali, naquela hora, parecia ser um pouco de tudo. Parecia ser um convite e parecia um recomeço, parecia ser um abraço mas ia um pouco além, parecia um beijo mas parava um pouco antes.

Parecia o sorriso velado de Paraná e o olhar espantado de Brasília.

Parecia um gesto de carinho e um pouco de caridade, parecia uma festa e uma pedra num assunto.

Uma Pinha parecia o Brasil.

Salada-Mista, finalmente

Depois da Pinha, havia tantas escolhas que RS pensou que demoraria até que alguém surgisse com algo novo. Porém, mesmo com todas aquelas opções, dava para ver que o pessoal estava ficando cansado, não, estava querendo algo mais.

Porque, bom, nada explicava que Maranhão, após ter escolhido uma reles e ignóbil Pêra para repartir com Piauí, tivesse apertado sua mão e então lhe dado um fabuloso puxão até roubar-lhe um beijo nos lábios.

O que era um tipo bastante inovador de trapaça.

De qualquer forma, o jogo foi se arrastando na mesmice até que Paulo decidiu ir lá pra frente.

Isso foi surpreendente, não só porque a sua última vez ainda tinha sido a do Café, como porque, antes de ter seus olhos cobertos, ele ergueu as mãos para o círculo:

-Só pra vocês ficarem sabendo, diferente de umas pessoas aqui, eu não vou trapacear. Pode começar, Babi.

Alguns vaiaram seu comentário, RJ lhe mostrou a língua e Bahia cobriu seus olhos. Paulo deixou que ela o girasse não sei quantas vezes (ele devia achar que alguém estava se importando), até que finalmente disse:

-Pode parar.

E ele estava apontando para Rio de Janeiro.

-Certo… - Bahia disse devagar - e o que vai ser?

Paulo abriu a boca para responder, mas, antes que pudesse, RJ gritou:

-Salada mixta!

O silêncio que se seguiu estava cheio de expectativa e mistério, e na verdade não importava que São Paulo e Rio de Janeiro fossem livres para fazer o que quisessem quando estivessem sozinhos, porque o jogo era aquele, e a prova agora, a Salada Mista, era o quanto Paulo confiava em RJ.

Paulo sorriu, o rosto avermelhando atrás das mãos de Bahia:

-Salada mista - ele repetiu - Com certeza!

Bahia o soltou e ele estendeu as mãos para Rio de Janeiro. Então a Salada começou:

Primeiro, Paulo beijou as mãos de RJ, mas isso ainda não era a Salada Mista. Ele ergueu o queixo dela (porque agora a diferença de altura entre os dois era muito maior) e beijou seus lábios. RJ segurou a cintura de Paulo e então, sob o foco de vinte e cinco olhares…

…os dois…

…abriram a boca.

E ninguém ali era criança, mas ninguém era adulto, então todo mundo gritou e toca pegar o violão de novo, Paulo e RJ começaram a sorrir no meio do beijo e depois que terminaram trocaram um Cupuaçu e outra Salada Mista, então Rio de Janeiro queria dançar e queria que ele dançasse também:

-E você é o maior trapaceiro da história! - ela disse, segurando seu rosto para uma Pinha-Cupuaçu - Ou vai querer me convencer que não sabia que era eu?

-Claro que eu sabia - Paulo respondeu, enchendo-a de pequenas Maçãs - Eu te reconheci pelo cheiro.

E na verdade era uma merda que a brincadeira tivesse sido interrompida, RS pensou, porque agora ele estava dançando com Catarina, e sabia que ia ser a maior fila quando decidissem recomeçar.

Mas Salada Mista - ou Mixta - era isso, essa mistura de tudo o que já tinham feito até agora.

E, conforme RS pensou depois, enquanto via Catarina dançar ao lado de RJ, Bahia e Amazonas, Salada Mista era uma promessa de tudo o que estava por vir.

Depois da chegada e do apogeu da Salada Mista, não foi muito tempo até que todo mundo começou a trapacear oficialmente. Agora a trapaça estava praticamente instituída: antes de Bahia cobrir seus olhos, você fala pra ela com quem quer ficar.

A única pessoa que não trapaceou foi Pernambuco.

E ele tirou São Paulo.

E então, quando viu que tinha tirado São Paulo, Pernambuco engoliu em seco e disse:

-Eu não falei Salada Mista. Eu falei Banana.

Aí ele fez uma Banana com o braço, Paulo agradeceu (“meu, eu nunca duvidei que você ia nos livrar dessa!”), e ninguém nunca mais se arriscou.

A presença de trapaças, como era de se esperar, foi desgastando a brincadeira. Ou o jogo, já que agora ninguém era criança. Depois de um tempo, não fazia mais sentido esperar a sua vez naquele círculo para trocar uma Salada Mista com Catarina. Ou, dependendo do caso, assistir sentado enquanto Minas e Espírito Santo se davam Saladas ali na frente (“isso não é uma Salada Mista”, ES sorriu de lado “Isso é uma marmelada”).

Depois de um tempo, ninguém mais enrubescia.

RS não saberia dizer quem foi o primeiro a faltar num dos jogos. Ou quando foi a primeira vez que eles brincaram só com vinte e seis. Então não eram mais vinte e seis, eram vinte e cinco. Vinte e quatro.

Vinte.

Dez.

Rio Grande do Sul não saberia dizer quem começou a faltar, quem foi o segundo, mas lembrava que ele tinha sido um dos primeiros. Então de repente encontrava seus irmãos abraçados, andando de mãos dadas, trocando beijinhos embaixo das árvores - e não fazia sentido parar pra olhar, não fazia sentido querer participar daquilo, porque agora cada um estava seguindo seu caminho, suas alianças, então RS fingia que não via e continuava em sua trajetória, porque aquela era só outra fase que tinha acabado.

Chimarrão, para sempre

Agora ninguém mais é criança.

O que isso muda, no longo prazo, não dá pra adivinhar. RS acha que, principalmente, agora é mais difícil que alguém confunda (sem querer) as sutilezas desta vida, que alguém traga na inocência um assunto pesado, porque agora todos têm mais mágoas do que antes, todos têm mais segredos e pontos delicados, porque não dá pra negar que eles são vinte e sete irmãos que se conhecem há um bom tempo e tiveram todos esses anos para se machucarem.

Mas, também, agora é mais fácil mudar de assunto. É mais fácil desconversar e fingir que não ouviu ou fugir da conversa ou partir pra cima, porque agora todos se encaixam - como num quebra-cabeças - e eles sabem quem está sempre mal-humorado e quem está namorando com quem e quem brigou com esse ou aquele na última festa de aniversário.

Por isso, quando RJ diz, para ninguém em especial:

-Alguém mais acha engraçado que o RS e o Paraná nunca tenham se tirado? Naquela época que a gente brincava de Pêra, Uva, Maçã, Salada Mixta o tempo todo?

Rio Grande do Sul não entende aonde ela quer chegar (porque agora, nessa idade, eles sempre querem chegar a um lugar).

-O RS sempre trapaceava - Minas dá de ombros - E o Paraná não sabia brincar direito.

E na verdade não dava pra saber se estavam todos ali, eram muitos pra RS conseguir contar assim de cabeça, mas eram mais de dez, disso ele tinha certeza, mais de dez sentados num círculo em volta de uma fogueira que iluminava a noite.

-Eu trapaceava?

-O tempo todo - Catarina sorri - Fala pra gente, RS. O que você teria dado pro Paraná?

RS torce a boca e, antes que pudesse responder, sente alguém cobrindo seus olhos:

-Ah, mas não é assim que se brinca, meu rei - a voz de Bahia soa alegre e divertida - Sem trapaça dessa vez.

-Mas ele está sentado - Paulo reclama - E ele lembra onde o Paraná está sentado.

O comentário irrita Rio Grande do Sul:

-Como coisa que eu ia trapacear pra ficar com ele.

-Não mente - e é o primeiro comentário que Paraná faz - Você sabe que você quer.

-Então a gente vai rodar - agora era a voz de RJ - E, quando você disser “pára”, quem ficar na sua frente ganha uma coisa.

-Ah, francamente, RJ. A gente não está velho demais pra isso?

Ela não responde - ninguém responde - e RS realmente escuta o som de passos, de movimento, mas era difícil de acreditar que todos eles tinham vencido a preguiça e a moleza só para aborrecê-lo.

Quando as coisas começam a ficar meio ridículas, ele diz:

-Pára.

Silêncio.

Mas não era possível que eles realmente tivessem andado em círculo esse tempo todo, era?

-E o que vai ser?

Então, antes que RS possa responder, e ele tinha até aberto a boca, Paraná dá um berro:

-Pêra!

Esse grito, que podia ter vindo de qualquer direção, causa certas risadinhas, e de repente a brincadeira é essa. É o quanto Rio Grande do Sul acredita que Paraná não quer nenhuma Salada Mista sua (e ele sabe que Paraná quer) ou o quanto Rio Grande do Sul acha que Paraná ia querer irritá-lo na sua privacidade com Catarina.

É a brincadeira de vinte e sete irmãos que gostam de se irritar, é uma renca de palavras cortantes que tinham aprendido a engolir, é um beijo que tinha ficado pendente.

-E o que vai ser? - Bahia repete, a boca tocando em seu ouvido e isso ainda o deixa arrepiado.

-Chimarrão - Rio Grande do Sul responde, sorrindo com o canto dos lábios - Porque ninguém aqui é criança.

E nessa hora RS promete que não importa quem seja, pode ser Paraná, pode ser Santa Catarina, São Paulo, Amazonas, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Brasília - pode ser qualquer um e pode ser todo mundo -, Chimarrão é uma aliança, Chimarrão é encaixar no quebra-cabeças, é nostalgia de uma infância que tinha acabado e uma promessa do que estava vindo.

Chimarrão é o Brasil.

Chimarrão é Salada Mista.

E então Bahia descobre seus olhos.

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