Anything about Rio Grande do Sul I

Dec 28, 2010 18:41

...Ou, no caso, o pedido de meu querido anônimo: Qualquer coisa envolvendo o Rio Grande do Sul.

Título: Pêra, Uva, Chimarrão
Classificação: Livre, I guess
Advertências: outros estados roubando a cena o tempo todo D: E isso ficou looooongo
Personagens: RS, SC, SP, RJ, PR, BA e praticamente todo mundo
Sumário: É tipo que uma linha do tempo da história do Brasil com menções muito sutis à mudança de capital, República do Café com Leite, governo de Vargas, Revolução Farroupilha, criação do estado do Paraná (não necessariamente nessa ordem) & muito mais.

...Ou, pra quem não comprar essa idéia, é a historinha de um bando de crianças perdendo tempo enquanto deveriam estar fazendo algo útil pelo país u.u"



Pêra

Verdade seja dita, a primeira vez que Rio Grande do Sul participou da brincadeira, ele não sabia muito bem o que devia fazer. Não que a culpa fosse sua - não era - mas ainda era muito novo naquilo de família, naquela turma agitada e barulhenta, então, como Rio de Janeiro não explicou, ele não perguntou.

Seus irmãos (e naquela época eles ainda eram poucos, não chegavam a dez, e também eram muito pequenos, todos com menos de um metro e trinta) tinham se sentado em círculo e, no meio de todos, Bahia exibia um sorriso radiante, tampando os olhos de RJ à sua frente.

RJ também sorria, virando-se e cochichando alguma coisa no ouvido de Bahia, e depois voltando à posição inicial, olhos tampados, o braço direito estendido pra frente.

Esse gesto, de cochichar com Bahia, incomodou São Paulo, sentado ao lado de RS.

-Aposto que ela está trapaceando - ele murmurou, abraçando os joelhos contra o corpo - Impressionante.

RS retribuiu o olhar, pensando se deveria perguntar do que se tratava tudo aquilo.

Mudou de idéia.

-Já era de se esperar - deu de ombros.

No centro do círculo, RJ deu uma volta completa, o braço ainda estendido ao vento, e Bahia girou com ela, as duas rindo feito hienas, até que os outros começaram a reclamar. Quando estavam para terminar outra volta, RJ parou, a ponta do dedo voltada para SP e, não fosse o fato de que isso era impossível para ela, RS poderia jurar que viu seu rosto avermelhar.

-E aí? - Bahia perguntou, sem destampar seus olhos - O que vai ser?

-Pêra - RJ respondeu, apertando os pulsos dela.

Bahia a soltou e o sorriso de RJ não mudou enquanto São Paulo ficava de pé e andava até o centro do círculo, parando à sua frente.

Ele sorriu, estendendo o braço para ela, a palma da mão aberta e esticada para cima, as pontas dos dedos apontando para o céu:

-Trapaceira.

-Eu senti o seu cheiro.

Paulo riu e RJ encostou sua mão na dele, dedo contra dedo, palma contra palma. Os dois mediram os tamanhos das mãos por alguns segundos (a de Paulo era maior) e então as cores das peles (a de Rio era mais escura), até que os dedinhos encontraram seus caminhos e escorregaram no toque, fechando-se sobre a mão do outro.

RS entendeu, nessa hora, que Pêra era um acordo de paz.

-Você tem um pedido especial?

RS olhou para Bahia, a testa ligeiramente franzida, sem entender a pergunta. Ela deu algumas olhadas discretas para os lados antes de explicar:

-Pra sua Pêra. É a primeira, não é?

-É - ele assentiu, sentindo o rosto avermelhar de leve. Até agora, ninguém tinha escolhido dar uma Pêra para ele. Minas e Espírito Santo já tinham trocado (duas vezes, uma pra cada), Sergipe e Alagoas uma vez, Alagoas e Pernambuco uma vez, todo mundo já tinha pelo menos UMA Pêra.

Bahia tinha duas.

RJ tinha três.

-Então - Bahia disse, um sorrisinho triunfante - Você tem um pedido especial? Ou vai confiar na sorte?

RS correu os olhos pelo círculo, ignorando as reclamações e o pessoal que estava mandando ele se apressar.

Não tinha ninguém ali que valia uma Pêra. Afinal de contas, ninguém trapaceou para ficar com ele, certo?

Estava quase dizendo para Bahia deixar quieto quando seus olhos encontraram os do Rio Grande do Norte. Ele estava sentado com os joelhos dobrados pra frente - mas bem folgados, não parecia emburrado como Paulo há alguns minutos atrás - e os braços atrás das costas, sustentando o peso do corpo.

RN sentiu o seu olhar e sorriu para ele, sem dizer nada. Esse sorriso foi a última coisa que RS viu antes de Bahia cobrir seus olhos dizendo “tá, já entendi” e começar a girá-lo no meio de todo o povo. Ela ia tão rápido que realmente não tinha a menor chance de RS escolher a pessoa errada, já que mal tinha tempo de pensar quando Bahia o girava de novo.

Após umas duas ou três voltas ele começou a rir, completamente tonto, e pediu pra Bahia parar - “esse, esse!” - então ela lhe deu mais um tranco e RS quase caiu, desnorteado, o braço bobo apontando qualquer direção.

-É esse aqui - repetiu, segurando um dos pulsos dela com a mão esquerda.

-E o que vai ser?

-Pêra - RS respondeu, sentindo a pele avermelhar.

Bahia descobriu seus olhos, recuando um passo, e RS pensou que vergonha seria se RN tivesse feito uma careta, ou se não tivesse ficado de pé tão rápido, se ele se recusasse ou fingisse que não era com ele.

Mas seu irmãozinho não fez isso. Ele ficou de pé e estendeu o braço, a palma virada pra cima, e RS pousou sua mão sobre a dele, tocando de leve as linhas que marcavam seu pulso.

Nessa hora RS se sentiu o Brasil, de mãos dadas com um irmão que ele mal conhecia e que morava tão longe de sua casa. Ele pensou em dizer isso em voz alta, mas achou que soaria estúpido, que não conseguiria explicar direito, então só sorriu, satisfeito com sua primeira Pêra, e fez um carinho na mão de RN.

Rio Grande do Norte sorriu também:

-Você tem um sorriso lindo - ele disse, erguendo a mão de RS até os lábios - A minha Pêra vai pra você também.

Uva

Depois que todo mundo já tinha pelo menos uma Pêra, RJ reclamou que aquilo estava ficando meio cansativo.

-Dar as mãos é cansativo! - ela disse, puxando o cabelo para trás e prendendo com um nó - A gente tinha que inventar outra coisa.

-Então inventa - Paulo respondeu, mas ele parecia ter ficado sentido - Foi você que inventou essa brincadeira mesmo.

-Justamente. Por isso que outra pessoa tem que inventar agora. A minha parte eu já fiz.

Paulo não respondeu, desviando o rosto, e RJ, mesmo vitoriosa, não deu nenhuma idéia. Os irmãos de RS, que agora já eram bem mais que dez, esperaram quietinhos, desenchavidos, até que Paraná se levantou:

-Eu sei. Mas eu quero que seja pro Paulo.

Às palavras dele se seguiu um silêncio ligeiramente pesado e ligeiramente desconfortável.

-Sabe, irmãozinho - quem falou foi Catarina - é a sua primeira vez, então tudo bem, mas não é assim que se brinca. Você não pode escolher. Tem que ser de olhos fechados.

-Eu vou fechar os olhos - Paraná retrucou, muito sério - Por isso eu estou escolhendo agora.

-Mas não é assim, Paraná - Bahia disse, a testa franzida, os olhos mudando dele para Paulo e vice-versa - Se for assim, não tem graça.

Paulo pigarreou, estendendo a mão até pegar a de Paraná:

-Bom, mas é a primeira vez que ele está brincando, então qual é o problema? Sem contar que ele só vai mostrar como é, um exemplo, aí depois a gente incorpora a coisa e volta pro modo padrão.

RJ abanou a cabeça:

-Depois eu que sou a trapaceira. Vai, Paraná, mostra pra gente. O que você inventou?

Paraná abriu um sorriso triunfante, depois voltou a ficar sério e compenetrado, ficou de pé e foi para o meio do círculo. Paulo andou até ele, um sorrisinho besta brilhando nos lábios, e esperou.

-Eu inventei Uva - Paraná disse, abrindo bem os braços. Paulo abriu os seus também e eles se abraçaram, Paraná apertando o seu pescoço e Paulo apertando suas costas.

Nessa época eles ainda eram muito parecidos, mesma cara de bobo, e Paulo nem era tão maior assim, então o abraço… encaixava. Como um quebra-cabeças, Rio Grande do Sul pensou. Um quebra-cabeças com um desenho especial, o corpo de Paraná e o corpo de Paulo, e era engraçado, porque nem fazia tanto tempo desde que eles tinham brigado e se separado para sempre.

Quando o abraço levou muito mais tempo que o normal e mesmo assim ninguém xingou, quando RS viu que os dois estavam de olhos fechados - mais que isso, eles estavam tentando um esconder o rosto no outro, o que levantava a pergunta, eles estavam chorando? - RS entendeu que Uva era carinho, Uva era esquecer o que passou e continuar de onde parou, Uva podia até mesmo ser perdão.

-Gostei! - RJ se levantou de um pulo assim que Paulo e Paraná se afastaram - Uva é a nova Pêra!

Como estava se tornando um costume, demorou um bocado até sair a primeira Uva de Rio Grande do Sul. Ele estava cada vez mais irritado com isso (afinal de contas, até onde ele sabia, a Serra Gaúcha era simplesmente O LUGAR para a produção de uvas e vinhos) e prometeu para si mesmo que, se ninguém o escolhesse, iria fazer uma loucura.

Qualquer uma.

-Sabe - Paulo disse, depois que percebeu o seu mau-humor - não tem por que você ficar esperando sentado. É só ir lá e pedir pra Bahia tampar os seus olhos. Aí você dá uma Uva pra quem você quiser.

-Eu não quero dar nenhuma Uva pra ninguém.

-Então qual é o problema?

-Eu quero receber uma Uva. Não dar. É muito diferente.

Paulo meditou nisso por alguns segundos, mas, por mais tempo que tivesse passado, ele ainda era bem tonto.

-Certo - ele acabou assentindo - Então. De quem você quer receber uma Uva?

-De todo mundo. De qualquer um que queira me dar uma.

-Que difícil que é ser você, hein?

RS não respondeu, vendo Pernambuco fazendo uma careta pra receber a Uva de Bahia (porque agora quem estava tampando os olhos era RJ) e depois o mesmo Pernambuco fazendo careta pra receber a Uva de Paraíba e aí de novo reclamando quando recebeu a Uva de Amapá.

RS estava quase se levantando para meter um soco no nariz dele por ser tão mal agradecido (essa era uma boa loucura para se fazer), quando, pra sua surpresa, o dedo de Catarina parou apontando na sua direção.

-Esse - ela disse para RJ - Eu escolho esse aqui.

-Certo - RJ abriu um sorrisinho malicioso - E o que vai ser? Pêra ou Uva?

-Uva - Catarina respondeu, sorrindo de olhos fechados.

Rio Grande do Sul ficou de pé antes mesmo que ela pudesse vê-lo, então se pegou se perguntando que vergonha seria, ainda maior do que quando dera a Pêra para RN, se ela mudasse de idéia assim que o visse.

Por que nada garantia que ela estivesse trapaceando, certo?

E se na verdade a Uva fosse para Paraná?

Porém, felizmente, assim que o viu, Catarina não fez nada, não sorriu um pouco menos, não sorriu um pouco mais, não recuou nem avançou para ele. Ela esperou parada, os braços abertos no meio do círculo, e enlaçou o pescoço de RS quando ele envolveu suas costas e a apertou contra si.

-Porque o Paraná pode dizer o que quiser - ela cochichou em seu ouvido - mas nós dois sabemos quem são os maiores produtores de Uvas do país.

Rio Grande do Sul riu e a abraçou com mais força, sentindo uma estranha vontade de fechar os olhos. E nessa hora ele também se sentiu Brasil, encaixado assim como a última peça de um grande quebra-cabeças, mais uma uvinha de um cacho grande e apetitoso.

Prelúdio para Maçã: Café com Leite

-A gente tinha que inventar outra coisa.

RS desviou o olho do centro do círculo, onde Mato Grosso acabava de dar uma Uva para Rondônia (já fazia cinco minutos que ele estava monopolizando a brincadeira. Como já tinha “Uvacionado” Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul e Pará, RS acreditava que já estava acabando).

-A Rio está cansando da Uva também, olha a cara dela. A gente tinha que inventar outra coisa.

Rio Grande do Sul fez uma careta:

-Sabe - ele disse devagar - quando você fala “A Rio”, pode muito bem ser eu, o RN e até mesmo o Paraná. Ou o Tocantins. Ou a Amazonas. Ou todo mundo que tem nome de rio.

-Eu nunca ia chamar o Paraná de Rio. Isso ultrapassa os limites do bizarro.

RS não soube o que responder, então voltou a atenção para Mato Grosso, que agora dava uma Uva para Amazonas.

-Bom, então inventa qualquer coisa aí. - acabou dizendo, já que Paulo não comentou mais nada - O que é que mais dá na sua terra? Viados?

-Quanta grosseria - mas Paulo riu. Ele inclinou o corpo para o lado até poder assobiar para Minas sem atrapalhar Bahia, que agora tampava os olhos de Alagoas.

Minas ouviu o assobio e foi até os dois, parando ao lado de Paulo:

-Oi, irmãozinho. O que foi?

-A gente tem que inventar uma coisa, mas o RS aqui não tem criatividade. Você tem alguma idéia?

-Vocês cansaram das Uvas?

-A Rio vai cansar. Já deve estar cansada.

-E, como o Paulo aqui não tem personalidade, ele vai cansar também.

RS falou mais para si do que para os outros dois, mas, mesmo aos seus ouvidos, a frase saiu mais pesada do que ele tinha medido. E eles ainda eram muito novos nessa hora, ainda não sabiam lidar com sutilezas, não sabiam fazer críticas veladas ou fingir que não tinham ouvido. Tudo era muito novo e muito intenso, então Minas parou de sorrir e Paulo se virou para ele:

-O quê?

E ainda não sabiam evitar discussões, não sabiam que certas coisas não se falam, não sabiam que certas coisas se deixam no ar.

-É isso mesmo - RS sustentou seu olhar - Já que ela vai cansar, você também vai. Porque longe de você discordar da nossa grande líder.

-Do que você está falando? - e o rosto de Paulo avermelhou - Eu odeio essa menina! Ela representa tudo o que existe de errado no nosso país!

-Por isso você fica de quatro pra ela?

Era a segunda baixaria que Rio Grande do Sul falava, e nem fazia tanto sentido assim. O silêncio pesou durante alguns segundos, a boca de Paulo aberta, e quando ele fechou a mão Minas disse:

-Já inventei uma coisa!

Os dois se viraram para ele, RS piscando algumas vezes como que para afastar aquela sombra momentânea, e Minas forçou um sorriso, ficando de pé:

-Não saiam desse lugar. Depois vocês me falam se aprovam ou não.

Ele correu para o centro do círculo e falou rapidamente com Bahia, que concordou em cobrir seus olhos.

-Por que não sair desse lugar? - RS perguntou, franzindo a testa.

-Ele quis dizer que vai trapacear - Paulo deu de ombros, sem olhar para ele - Mas isso é besteira. Claro que ele vai tirar o Espírito Santo, é sempre assim com esses dois.

RS não respondeu, e também parou de olhar para ele. Para a surpresa geral, o dedo de Minas passou reto por ES e parou em São Paulo.

Porque, aparentemente, todo mundo que ia inventar uma novidade tinha que começar com ele.

-É esse - Minas disse, sorridente. Bahia, que tinha que ficar na ponta dos pés para cobrir seus olhos, perguntou:

-E o que vai ser?

-Leite.

Paulo, que já tinha ficado de pé e andado até o centro do círculo, abriu um sorriso levemente nervoso:

-Leite? - ele ecoou - E como é um Leite?

-Pensa numa caneca cheia de leite - Minas disse, parando na frente dele e segurando seu rosto com as duas mãos - Cheia de leite bem quentinho.

Ele inclinou o rosto e Paulo abriu mais os olhos, parando de respirar. Minas inclinou o rosto e, quando estava a centímetros de tocar a boca de São Paulo - e eles ainda eram muito novos, só tinham trocado abraços até agora, RS não sabia de ninguém que já tivesse dado um primeiro beijo - Minas assoprou.

Ele tinha fechado os olhos, então não viu que Paulo piscou algumas vezes, o rosto vermelho até a raiz dos cabelos. E Minas assoprou seus lábios, o rosto, o nariz, os cantos dos olhos. Depois que ele o soltou e saiu do círculo, Paulo ainda ficou parado ali, feito um tonto sem rumo, até que deu uma risadinha nervosa e passou a mão pelo próprio rosto:

-Ah, bom, certo. Leite. Quem vai ser agora?

-Você devia retribuir.

Todos os olhos se voltaram para Rio de Janeiro. Ela estava sentada com os joelhos dobrados à frente do corpo, os braços esticados de forma a permiti-la segurar com os dedos das mãos os dedos dos pés.

-O quê?

-Ele te deu Leite - RJ disse, o rosto sem expressão - Você devia retribuir com alguma coisa.

Paulo sustentou o olhar dela por alguns segundos e RS conseguia adivinhar os pensamentos dele. Porque aquilo parecia uma armadilha, soava como uma armadilha e tinha cheiro de uma armadilha, mas RJ estava séria e tranquila, brincando com os dedos dos pés, convidando-o a trapacear descaradamente.

-Mas assim, sem tampar os olhos? - ele perguntou, por fim - Tem certeza?

-Claro. Você só está mostrando. Aí depois, como foi que você falou?

-Depois a gente volta pro modo padrão.

Ele disse numa voz meio murcha, meio sem graça e meio arrependida, o que fez RS pensar que realmente era importante saber que há coisas que não se dizem porque, depois que estas são ditas, alguém vai lembrar, alguém vai repetir, e elas vão ficar pra sempre na história.

-Isso mesmo. - RJ concordou - Agora mostra pra gente, Paulo. O que é que você vai dar em troca do Leite do Minas?

Paulo virou-se para Minas e, junto com ele, os olhares de todos no círculo. RS viu que Minas não estava vermelho, ele até sorria, mas não parecia tão confortável quanto antes.

E ninguém ali tinha dado um primeiro beijo, ninguém tinha dado ou recebido Leite antes.

Paulo se aproximou de Minas e RS viu, com o canto dos olhos, que RJ estava mordendo o lábio inferior e ES tinha cerrado os punhos, segurando a grama com tanta força que parecia que ele estava com medo de cair para cima.

Paulo se aproximou de Minas e segurou o rosto dele com as duas mãos:

-Café - ele disse e, a despeito de toda a tensão em volta, seus olhos tinham suavizado de carinho - Um cafezinho bem cheiroso.

Então Paulo fechou os olhos e puxou o rosto de Minas para baixo. De novo eles estavam quase se beijando quando ele respirou fundo, bem fundo, inalando o ar em torno do rosto de Minas.

Por alguma razão, isso fez RS soltar o ar, sentindo o alívio relaxando seus braços e costas.

Paulo puxou o ar de perto da boca de Minas, seu nariz e, como ele era mais baixinho, encerrou respirando seu pescoço e as pontas do cabelo.

Depois que terminaram e se afastaram, ainda houve muito silêncio no círculo. O olhar de RJ fuzilava Paulo, mas ele não pediu desculpas, não recuou, não disse nada, parado sem rumo ali no centro.

-Muito bom, Paulo - ela cedeu primeiro, olhando-o de baixo para cima - E eu pensando que na sua terra só existiam prédios.

-Eu achei IDIOTA - quem falou foi Espírito Santo, e todos se viraram para ele - Porque Leite dá sono e Café deixa você acordado. Pra quê é que alguém vai beber isso?

Paulo deu de ombros, sem responder, mas Minas pareceu sentido com o comentário. Nessa hora RS entendeu que Café-com-Leite era uma das coisas que não se falavam. Café-com-Leite era egoísmo, Café-com-Leite era ignorar os sentimentos de tanta gente só por…

Por quê?

-Eu não beberia - Paraná respondeu, ficando de pé - Eu sempre detestei café.

Ele se afastou do círculo e dessa vez a brincadeira parou por aí.

Maçã

Depois do Café e do Leite, São Paulo e Minas ficaram um tempo sem participar - pelo menos ativamente - da brincadeira. Eles ainda iam, as vezes sentavam juntos, as vezes não, assistiam tudo e depois iam embora.

Numa das vezes que foi um dos primeiros a chegar para compor o círculo, RS pôde ouvir Rio de Janeiro dizendo a Paulo:

-Eu não quero nem saber, gato! Você foi a minha primeira Pêra! Eu tinha que receber qualquer primeira coisa que você inventasse!

-Mas você mesma falou pra eu retribuir!

-Falei sim, mas você sabe muito bem que não foi por isso que você deu aquela cheirada nele. Você deu porque quis. Porque é um canalha.

Rio Grande do Sul ergueu as sobrancelhas, parando onde estava.

Paulo fez uma concha com as mãos, cobrindo o nariz e a boca. Antes de falar, ele respirou fundo:

-Mas você trocou mais de vinte Uvas. Qual é o problema-

-A minha primeira Uva foi sua. Esse é o problema. Eu estou cansando de te dar todas as minhas primeiras frutas.

Amazonas e Acre (outro que ainda era muito novo naquela brincadeira) estavam chegando nessa hora, então a conversa dos dois parou por aí. RJ sorriu para os recém-chegados, cumpriu seu papel de estrela da festa como sempre e perguntou a ele onde estavam Catarina e Paraná.

Depois que ela se afastou, RS sentiu o olhar de Paulo pesar sobre seu rosto, e perguntou-se se ele sabia que RS tinha escutado tudo.

Mas o olhar de Paulo não era de raiva, nem mesmo de irritação. Ele só estava olhando, a um diâmetro de distância, e RS entendeu que provavelmente ele não sabia se devia- se podia se aproximar ou não. Se RS também fazia parte daqueles que não tinham visto graça nenhuma no Café e no Leite.

Bom, RS estava com raiva. A distância era confortável, eles não eram mais tão crianças agora, estavam todos crescendo e fazendo planos e projetos e alianças…

Na verdade, a maior parte do tempo RS sentia que não queria mais brincar disso.

Não com eles, pelo menos.

Então, como Paulo ainda esperava, Rio Grande do Sul desviou o rosto e sentou-se ao lado de Paraná e Catarina.

No decorrer da brincadeira, após um grande número de Uvas e até mesmo um Leite (porque ou Maranhão não tinha sentido o drama ou sinceramente não se importava), RJ se levantou:

-Eu vou inventar algo novo. - e ela se virou para Paulo - E eu não vou trapacear desta vez.

Ele mordeu o lábio inferior e, por mais que RS duvidasse dessa afirmação, a frase pareceu deixar o jogo ainda mais empolgante. Bahia e RJ giraram umas três vezes até que ela disse “pára!” e falou que ia dar uma Maçã.

E ela estava apontando para Rio Grande do Sul.

RS sentiu o rosto avermelhar, sentiu Santa Catarina apertando sua mão enquanto ficava de pé e, pior, sentiu que RJ realmente não tinha trapaceado.

-Fica na sua, RJ - Catarina disse, estreitando os olhos - Tem mais de vinte estados aqui. Você não precisa do RS.

-Ora vamos, Cat querida - e RJ forçou um sorriso cheio de dentes - “Maçã” não é nada demais. Uma coisinha rápida e indolor.

-Mesmo assim - Catarina ficou de pé, bastante irritada, o que causou grande alarde entre… entre praticamente todo mundo. Pernambuco começou a gritar “issaí, briga!”, no que foi seguido por Piauí, Mato Grosso, Sergipe e mais um monte.

-Mas essa é a brincadeira, Catarina - Paraná disse, um sorrisinho escapando entre o canto dos lábios - Pelo menos, foi assim que me ensinaram.

-Cala a boca, Paraná. RS, fala pra mim. Você quer a Maçã que a RJ vai te dar?

RS abriu a boca, mas não conseguiu fazer nada sair por ela. A pergunta de Catarina tinha mudado o humor de RJ de “envergonhada” para “desafiada” (ou, mais verdadeiro, “perigosamente curiosa”).

Que merda.

-Bom, eu…

-Essa é a brincadeira, não é? - Paulo disse, aproximando-se do grupo - E parece que a Rio quer muito dar a Maçã pra esse viado.

-Fica na sua, Paulo.

-Bom, se você der uma Maçã pro RS, eu dou uma pro Paulo.

-Deus do céu! - RJ gritou, exasperada - Como você é insuportável! Não tem nada demais na Maçã! É mais ridículo que a Pêra!

-Du-vi-do.

RJ respirou fundo e olhou longamente para RS, como que calculando se ele valia aquela dor-de-cabeça. RS tratou de ficar no silêncio mais absoluto que conseguia, concentrando todas as suas energias para deixar a face livre de qualquer expressão.

(Porque não era nenhum crime ele querer tanto a Maçã de RJ quanto o ciúme de Catarina quanto escapar vivo de tudo aquilo, era?)

-Tá. Olha, Cat. Isso é uma Maçã.

Ela puxou a nuca de Paulo e lhe deu um apertado e demorado beijo…

No rosto.

Então soltou.

Um passarinho cantou ali perto.

-Ué, espera - Pernambuco se aproximou do grupo, a testa franzida - Já terminou a briga? Quem ganhou?

-Bom, já que é no rosto… - Catarina pensou durante alguns segundos - tudo bem. A RJ ganhou. Pode entregar sua Maçã.

-Eu sei que eu posso - ela disse, estendendo a mão e puxando a cabeça de RS para baixo e beijando seu rosto. Não havia muito carinho nesse gesto (na verdade, no processo de apertar a sua cabeça, ela tinha praticamente dado um tapa em sua orelha), mas o beijo era bom, a Maçã era boa.

Depois que RJ o soltou e voltou resmungando para seu lugar (e Paulo estava bem mais alegre agora, “fala sério, Rio, eu sei que você me quer”), RS apertou a mão de Catarina e se sentou de novo, pensando que Maçã podia muito bem ser uma mudança de assunto, Maçã podia ser aliviar o clima.

Porém, quando Minas “também não vou trapacear” tirou Espírito Santo e lhe deu uma Maçã entre o rosto e o canto dos lábios, Rio Grande do Sul pensou que Maçã não era só uma pequena palhaçada. Era mais… era o caminho entre duas coisas, entre aquilo que não se fala e as mudanças que o tempo traz, como um grupo que ainda tem brincadeiras de crianças e que de repente começa a ser velho demais para isso.

Algo como um beijo entre o rosto e a boca.

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