Há diversos tipos de morte - algumas nas quais o corpo remanesce; e em algumas ele desaparece para bem longe junto ao espírito. Isso costumava acontecer somente na solidão (assim como é o desejo de Deus) e, ninguém vendo o fim, nós dizemos que o homem está perdido, ou que partiu em uma longa jornada - que de fato ele realmente tinha; mas às vezes isso acontecia na vista de muitos, assim como muitos testemunhos mostravam. Em um tipo de morte o espírito também morria, e sabia-se que isso procedia enquanto o corpo ainda estava em vigor por muitos anos. Às vezes, como é verídicamente atestado, [o espírito] morria com o corpo, mas uma estação surgia novamente naquele lugar onde o corpo decaira.
Ponderando estas palavras de Hali¹ (a quem Deus descança) e questionando seus significados completos, como alguém que, tendo uma intimação, ainda duvida se não há algo por trás disso, além do que ele já discerniu, eu não notei que estava devaneando até que um vento frio de repente me soprou o rosto revivendo meus sentidos do que estava ao redor. Eu observei com surpresa que tudo parecia incomum. Em todos os meus lados se extendia, deserta e desolada, uma expanção de planície, coberta com uma alta camada de grama murcha, que sussurava e assoviava no vento de outono com sabe-se lá que misteriosa e disquietante sugestão. Projetadas em longos intervalos acima dela, estavam postas pedras de formas estranhas e cores escuras, que pareciam se entender umas com as outras e trocar olhares de incômoda significância, como se estas tivessem erguido suas cabeças para observar o desenlaçar de um evento já previsto. Algumas malditas árvores aqui e ali apareciam como líderes nesta malevolente conspiração de expectativa silenciosa.
Eu observei no gramado um número de pedras desgastadas pelo tempo, evidentemente moldadas por instrumentos. Algumas ficavam estendidas, algumas pendiam em vários ângulos, nenhuma estava em vertical. Elas óbviamente eram lápides de túmulos, embora os túmulos em si já não existiam tal qual os
montes [de terra] ou [o solo] abaixado; os anos haviam igualado todas elas. Espalhados aqui e ali, mais blocos maciços apareciam aonde algumas tumbas pomposas ou monumentos ambiciosos um dia lançaram suas lânguida afronta ao esquecimento. Tão velhas pareciam estas relíquias, estes vestígios de vaidade memoriais de afeição e piedade, tão abatidos e desgastados e manchados - [era] tão negligenciado, deserto, esquecido o lugar que não pude evitar senão pensar que eu seria o descobridor do cemitério de uma pré-histórica raça de homens cujo o nome fora há muito tempo extinto.
Tomado de todas essas reflexões, eu fui por um tempo imprudente à sequência de minhas próprias experiências, mas logo pensei " Como vim parar aqui?" Um momento de reflexão parecia alucidar tudo isso e ao mesmo tempo explicar, ainda que de forma inquietante, o caráter único com o qual minha imaginação investiu tudo que eu vi ou ouvi. Eu estava doente. Eu lembrava agora que estava abatido por uma repentina febre, e que minha família havia me dito que em meus lapsos de delírio eu suplicava constantemente por liberdade e ar, e que fôra mantido na cama para impedir que escapasse para fora de casa. Agora eu havia iludido a vigilância de meus criados e vaguei até aqui - até onde? Eu não poderia pressupor. Claramente estava há uma considerável distância da cidade aonde vivia - a antiga e famosa cidade de Carcosa.
Não havia em parte alguma sinais de vida humana visíveis ou audíveis; nenhum subir de fumaça, nenhum latido de cão de guarda, nenhum mugir de gado, nenhum som de crianças brincando - nada além daquele sombrio cemitério, com sua aura de mistério e horror, devido ao meu próprio cérebro desorientado. Não estaria eu delirando assim, de forma além da cura humana? Não seria de fato TUDO uma ilusão da minha loucura? Eu gritei por nomes de esposas e filhos meus, estendi as mãos a procura deles, mesmo enquanto caminhava entre pedras espedaçadas e no gramado murcho.
Um barulho atrás de mim me fez revirar. Um animal selvagem - um lince - estava se aproximando. O pensamento veio a mim: se eu perder o controle aqui no meio do nada - se a febre voltar e eu não resistir, essa besta vai me pegar pelo pescoço. Eu corri em direção a ele, berrando. Ele trotou tranquilamente há um palmo de distância de mim e desapareceu por detrás de uma rocha.
Um momento depois a cabeça de um homem parecia surgir da terra à uma pequena distância. Ele estava subindo a encosta mais afastada de uma baixa colina cujo o cume dificilmente se distinguia do nível geral. Sua figura inteira logo se fez presente contra o fundo de nuvens cinza. Ele estava semi-nu, meio vestido em peles. Seu cabelo estava desgrenhado, sua barba longa e irregular. Em uma mão ele carregava um arco e flecha; a outra segurava uma tocha em chamas que trazia consigo uma longa trilha de fumaça negra. Ele andava lentamente e com cuidado, como se temesse cair em algum túmulo aberto encoberto pelo alto gramado. Essa estranha aparição surpreendeu mas não assustou, e fazendo tal percurso como se a fim de detê-lo, eu o vi quase que cara-a-cara, abordando-o com a familiar saudação "Deus o proteja".
Ele não deu atenção, nem prendeu o ritmo.
"Meu bom estranho," continuei, " Eu estou doente e perdido. Eu lhe suplico, me guie até Carcosa"
O homem desatou num cântico bronco em um dialeto desconhecido, passando direto.
Uma coruja no tronco de uma decaída árvore piou sombriamente e foi respondida por outro piar há distância. Olhando para cima, eu vi por entre uma brecha repentina das nuvens Aldebaran e Hyades! Nisso tudo havia um toque da noite - o lince, o homem com a tocha, a coruja. Ainda assim eu vi - vi até mesmo as estrelas na ausência da escuridão. Eu vi, mas aparentemente não fui visto ou ouvido. Em que horrível encanto eu existia?
Eu sentei ao pé da raiz de uma grande árvore, considerando sériamente que seria o melhor a fazer. Que estava bravo por não poder mais duvidar, porém reconhecia o motivo da dúvida na convicção. Eu não tinha sinal de febre, Eu tinha, apesar de tudo, um senso de alegria e vigor conjunto desconhecidos a mim - uma sensação mental e física de euforia. Meus sentidos pareciam estar em alerta; Eu podia sentir o ar como uma substância pesada; Eu podia ouvir o silêncio.
Uma grande raiz da gigantesca árvore, em cujo tronco eu me debruçava enquanto sentado, pressionava em seu poder um fragmento de pedra, uma parte que se estendia em um descanço formado por outra raíz. A pedra era portanto parcialmente protegida do tempo, embora muito decomposta. Suas pontas eram arredondadas, seus cantos comidos, sua superfície profundamente enrrugada e escamosa. Partículas brilhantes de mica eram visíveis na terra - vestígios de sua decomposição. Esta pedra aparentemente marcava a tumba da qual a árvore se desabrochou anos atrás. As raízes rígidas da árvore haviam consumido a tumba e fizeram da pedra prisioneira.
Um vento repentino remexeu alguns galhos e folhas secas da área mais elevada da pedra. Eu vio baixo relevo das letras de uma inscrição e me debrucei para ler. Deus do Céu! MEU nome completo! - a data do MEU nascimento! - a data da MINHA morte!
Um eixo de luz iluminou o lado inteiro da árvore enquanto eu me recompunha de pé em terror. O sol estava nascendo ao leste [do céu] rosado. Eu fiquei entre a árvore e seu amplo arco vermelho - nenhuma sombra escureceu o tronco!
Um coro de lobos uivantes saudaram a alvorada. Eu os vi sentados em seus traseiros, um a um e em grupos, nos cumes de montes irregulares e tumuli enchendo metade de meu vazio panorama e extendendo-se ao horizonte. E então eu sabia que estas foram ruinas da antiga e famosa cidade de Carcosa.
Assim como são os fatos transmitidos ao médium Bayrolles² pelo espírito de Hoseib Alar Robardin.
¹ : "Livro do famoso profeta traduzido pelo médium E. S. Bayrolles. As Revelações foram publicadas mais tarde pelo Golden Goblin Press de Nova York em 1913. Apesar de uma cópia ser mantida pela Universidade Miskatonik, nada se sabe sobre seu conteúdo." Ele inclui a estória Typo de Michael D Winkle. A terceira edição da Enciclopédia Cthulhiana indica que ele consiste em hinos de um ser de Carcosa chamado Hoseib Alar Robardin.
² : Médium mencionado em uma nota de rodapé em O Habitante de Carcosa como uma canalização do espírito de Hoseib Alar Robardin e, na parte final da conto A Estrada Iluminada pela Lua, no qual eles encarnam a assassina Julia Hetman. Ele é o alvo de Bayrolles.