Título: Fome Youkai - cap 5: Azedo amor - parte 2
O koorime arregalou os olhos vermelhos, espantado. A energia que entrava pelo seu corpo crescia e se acumulava, quase sufocando-o, mas ele não queria pará-la, não queria interrompê-la. Hiei colocou a outra mão no vidro e olhou sério para o humano esperando que ele também colocasse sua outra mão lá. O humano obedeceu a ordem muda rapidamente.
Um grito de dor saiu de Hiei enquanto ele curvou o corpo e fechou os olhos com força. A energia não apenas sufocava mas transmitia a sensação de que seu corpo começava a ser rasgado por dentro. Hiei sentia-se ferido, sangrando... por dentro.
Ele se afastou da janela e recuou alguns passos para trás até chegar no meio da cela. Lá, ele desabou exausto no chão, seu tronco subindo e descendo com a respiração pesada e falha. Suas mãos estavam fechadas em punho e a cabeça pendia, deixando que várias gotas de suor caíssem no chão.
Hiei gritou de novo. Ele abriu os olhos e percebeu que o que sentia já não era mais nenhuma brincadeira da sua mente. O sangue que viu escorrendo das suas costas era real. A dor era real. Hiei se curvou tentando frear a energia, mas que já estava muito mais forte do que ele.
A roupa preta foi rasgada e uma enorme asa negra surgiu nas suas costas, o sangue correndo livre pelo ferimento e pela extensão da asa. Ofegando e gemendo de dor, Hiei tentou se levantar mas o peso da asa em um só lado o fez desequilibrar e cair e antes que pudesse se mexer de novo, uma segunda asa surgiu, fazendo-o gritar, curvando ainda mais o corpo.
A dor era imensa e completamente dominadora, ela sobrepujou todos os sentidos de Hiei, deixando-o mudo, cego, surdo... apenas o coração ainda respondia por si mesmo, numa batida rápida e descompassada que foi diminuindo, pouco a pouco, até ficar rítmica e lenta.
Lento... muito lento... todo o ambiente a sua volta parecia girar lentamente e o koorime piscou várias vezes, sentindo-se cada vez mais tonto, mais sem controle de sua própria força, sem controle da realidade. Então, como num baque, tudo parou. Seu coração, a sala, sua força sumiu por completo e Hiei se viu no meio de uma completa escuridão.
Ele piscou de novo, esperou algum tempo para ver se sua visão se acostumava com a escuridão, mas nada mudou, nada aconteceu... Não era escuridão, ele entendeu por fim. Era apenas negro. Negro e calmo, negro e silencioso, negro e quente.
Hiei aproximou a mão da massa negra que vibrava a sua volta, bem próxima a ele. Mexia-se curta e lentamente, num movimento quase imperceptível, como uma respiração lenta, e também transmitia calor, uma sensação de proteção, de conforto, de paz...
Os dedos tocaram e tremeram. A massa negra tremeu junto e Hiei arregalou os olhos, assustado. Ele sentiu e tremeu... era como se fosse ele mesmo, como se tocasse a si mesmo. Sentiu e só agora percebeu... aquilo fazia parte dele... era ele! Hiei suspirou pesadamente e a massa negra acompanhou delicadamente o movimento de seu tronco. Ainda assustado, o koorime aproximou novamente a mão e sentiu como era essa nova pele. Grossa e com leves reentrâncias, quente e úmida, como se estivesse suada.
Decidindo-se, Hiei fechou os olhos e comandou que aquilo se movesse. Ele sentiu um pequeno movimento e um repuxar de músculos nas suas costas e ao longo das duas... coisas negras que lhe envolviam. Abrindo os olhos, ele fez um movimento mais largo e percebeu a claridade da cela aparecer por uma fresta.
São duas asas!
"Hmm...", Koenma murmurou algo inteligível ao enxergar a figura de Hiei, curvada e ofegante, no meio da cela, "Como nós suspeitávamos..."
"A transformação foi incompleta.", Yomi concluiu ao lado de Yusuke, analisando o novo youki que Hiei liberava. O normal seria que o youkai enlouquecido pela fome revertesse a sua forma primitiva que, se ele não estava enganado, para os youkais de fogo seria um tipo de dragão, "Não seria uma falha nele mesmo?"
Koenma virou-se para o rei de Gandara, refletindo sobre o que ele disse, "Você quer dizer que talvez seu corpo não saiba no que se transformar?"
"Ele é uma mistura.", Yomi afirmou, aproximando-se de Kurama, que segundos depois, caiu em seus braços, desmaiado, "Metade youkai de fogo, metade koorime. Isso pode ter interferido, não?", ele explicou calmamente, enquanto apoiava o ruivo em uma maca trazida pelos seus assistentes.
"Sim... um youkai enlouquecido pela fome geralmente se transforma na sua forma primitiva. Mas... como ele é um miscigenado, talvez não haja uma forma específica para a qual ele deva se transformar."
"O destino dele já está definido, no entanto...", Yomi suspirou, acariciando levemente os cabelos suados de Kurama, que começava a voltar a si, "Ele vai morrer... e não há nada o que se possa fazer."
A constatação de Yomi pesou sobre todos os ocupantes da sala, Kuwabara, inclinou a cabeça e fechou os olhos, Koenma voltou a olhar pensativo para a pequena janela onde se via Hiei, agora encoberto pelas novas asas, Yusuke fechou os punhos com força, mordendo o lábio.
"Na verdade...", ele sussurrou de repente, "Eu acho que talvez... seja bem pior que isso."
Será que era apenas isso? Ou tinha mais? Iria apenas ficar com essas duas asas negras enormes, machucando-lhe as costas, e louco de fome? Iria morrer de loucura? Lúcido, com a memória de volta e com plena consciência do que acontecia a sua volta, Hiei se desesperava em pensamentos, ainda escondido por trás de suas duas asas negras. Morrer desse jeito humilhante... de fome... morrer de fome youkai!
Hiei sabia o que estava acontecendo com ele. A transformação era a típica estória de terror que as mães youkais contavam para os seus filhos apenas para assegurar que eles nunca deixariam de comer humanos. Mesmo assim, muitos achavam que era lenda de tão antiga e tão maternal que a verdade se tornou.
Um youkai faminto enlouquece. Hiei já podia considerar isso verdade, pois sabia que seus momentos de lucidez eram mais raros que sua própria comida. Um youkai faminto enlouquece e se transforma. Hiei também poderia confirmar isso... as enormes e pesadas asas em suas costas lhe diziam claramente que a sua transformação estava apenas começando. Um youkai faminto enlouquecido, depois de transformado, mata desmedidamente, expelindo seu youki e acabando por morrer esgotado e sem forças ou morto por outros youkais.
Hiei gostaria de morrer. Mas, diabos! Não desse jeito, tão humilhante. Como um touro descontrolado que não sabe nem refrear o próprio youki. Mas era nisso que estava se tornando, não era? Lentamente. Seu único consolo era saber que sua morte, mesmo humilhante e deprimente, significaria também que sua raposa estaria finalmente a salvo, pois sua maior frustração não era a mais a fome.
Sua maior frustração era saber que o sofrimento de Kurama era nada menos do que ele.
“Hiei!!!”
O grito inflamado de desespero quebrou seus pensamentos. Só então Hiei percebeu mais sons à sua volta. Batidas fortes, o barulho de metal contra metal, de algo se esforçando para não se romper. Gritos e mais batidas. Podia escutar o som de gotas caindo em uma poça, a respiração pesada de alguém, o roçar de peles grossas.
Abrindo as asas, Hiei se viu no cenário monstruoso do qual se escondia. O roçar de peles era uma asa contra outra, a respiração pesada... era a sua. As gotas eram seu sangue que caía na poça formada nos seus pés. A sala onde estava... era uma névoa de poeira cinzenta... podia perceber que as paredes de metal rangiam contra a força externa de algum ki...
Quando a névoa baixou um pouco, Hiei pôde visualizar uma janela... Kurama do outro lado batia com força contra ela... e gritava... e gritava... não parecia querer desistir. Era de Kurama a força que tentava destruir as paredes de aço do lugar onde estava.
Por que? Por que Kurama se importava? Quando a poeira abaixou mais, de onde estava, do centro da cela, o koorime percebeu o movimento de plantas ao redor do rosto assustado na janela. Kurama...
Hiei abaixou o rosto triste. Ele realmente era o maior sofrimento de Kurama... queria morrer para acabar com tudo. Mas... se morresse... Vivo ou morto, Hiei continuaria a machucar Kurama. Por que tinha que ser assim? Por que...
Luzes acenderam-se de repente dentro da cela, a grande porta se abria lentamente e Hiei, instintivamente, abriu as asas quando Kurama apareceu na sua frente, abraçando-o fortemente, chorando e sujando-se com o sangue que ainda escorria das asas negras.
"Hiei...", ele pediu, segurando o rosto do koorime nas mãos, "Por favor... por favor..."
Paralisado, Hiei deixou-se beijar bruscamente, enquanto seus braços erguiam-se para abraçar o corpo trêmulo junto ao seu. Desde que Kurama entrara na sala com seu cheiro, sua voz... sua carne... Hiei estava em um estado de torpor, como que embriagado pelo cheiro humano.
"Por favor...", Kurama pediu, com os lábios ainda colados aos de Hiei, "Eu não agüento mais... não agüento mais..."
Abraçando-o mais, Hiei afastou o rosto e perguntou, distante, "O que você quer?"
Kurama notou a mudança de Hiei tão logo entrou na cela. Sabia que, ao entrar lá, ficaria ao lado de um inimigo, de alguém que não mais o amava como pessoa... mas como comida. Engolindo o choro, ele molhou os lábios, antes de responder, determinado, "Me tire daqui.", ele implorou, fechando os olhos, sentindo as mãos de Hiei fecharem-se mais fortes e afiadas na sua cintura, "Por favor..."
Continua...