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Aug 31, 2009 00:29



Laços de sangue

- O quê te trouxe aqui?... Posso ver um tormento inquieto como uma grande parede de grossos tijolos amassando suas costas. A moça carrega um fardo?

Havia um motivo para que eu entrasse nesse barraco de madeira perdido na cidade de São Paulo. Houve e há sim um imenso motivo. Era o que me fazia desfalecer em palidez a cada minuto que se arrastava, e grudava em minha mente como um lembrete; em cada coisa ali estava presente - até num simples pentear de cabelo! E você também se espantaria se soubesse o que vi; que horrenda coisa! Meu Deus, o motivo pelo qual eu vim até aqui foi saber do meu futuro! Vim com medo, cambaleante porque, acima de qualquer temor e receio; ninguém e nem nada é o que parece... Todos usam máscaras acobertando o próprio instinto; todas andam acima e abaixo com um sorrisinho simpático falso, quando na verdade são verdadeiros monstros sanguinários. E só Deus, Meu Deus! que pode nos proteger. Nada mais, nada mais.

- A moça está tão nervosa por ter visto algo que não deveria, não é?

A velha então passou a embaralhar uma quantidade de cartas velhas e amareladas; cada fibra minha estremecia pelo reconhecimento de sua fisionomia e palavra. Senti as costas do vestido grudar na minha pele como se tivesse a agarrar meu corpo em forma de proteção quando a tremedeira e o frio invadia triunfalmente minha carne.
O anel de pedra azulada no dedo mindinho daquela mulher refletia meu rosto a cada balancear da lâmpada devido ao vento, meus olhos enviesavam certa repulsa pelas unhas compridas e mal pintadas de um cintilante vermelho - e que pelo esmalte via-se a negra sujeira repousando nas cutículas. O cabelo desgrenhado e perdido no tom cobre continuava a descer pela face gorda e pintada, onde seus dois olhos como ferro e imã perscrutava cada canto meu. Olhava com um sorriso debochado ou como se soubesse e enxergasse tudo que eu com estes meus dois olhos havia assistido... Como se eu fosse uma tela em sintonia com cada milímetro de cena da semana passada.

- Corte o baralho, meu amor...

Tive repúdio do cheiro do seu perfume doce quando se inclinara sobre a mesa de madeira, mostrando-me as cartas. Cortei tremulamente o baralho. Acompanhei ansiosamente - num misto de medo que me impedia de deixá-la dizer sobre o futuro, e vontade de saber. Afinal, estava no mal cheiroso barraco por isso não era? Tive ímpeto de levantar daquela bamba cadeira quando os fartos e caídos lábios dela descolaram. Outro sorriso que me repeliu e eriçou os pêlos do meu braço com bruta força. Ela, com olhar de deleite sobre cada desenho de carta que virava, atiçando o remexer das várias pulseiras no braço constrangia o silêncio terrível que desconstruía meu estômago e coração. Eu ouvia cada fibra muscular no peito enrijecer para depois estourar em tiras, finas tiras que escapuliam pelos buracos que eram abertos na parede intestinal e ali depositados para depois regurgitar, e alcançar e repousar em minha goela.
Eu tenho medo de morrer. Sempre adiei cada e toda conversa que rodeasse o final da vida; é o meu parecer de que viver é plenitude... Do que nos vale confrontar com o que a acaba?! Meu Deus; eu agora convivo com a morte! Anda ao meu lado, pousa em meu ombro e relaxa como se eu fosse seu altar... Como se eu devesse me tornar seu altar por ter visto o que vi! Meu Deus!

- Sabe que a moça é alguém de muita sorte... Muita sorte mesmo; confrontou com a Morte e voltou viva. Não é algo de se alegrar? Ver a Morte em pessoa e ser poupada não é para qualquer um... A moça ou deve ser forte, ou muito bonita aos olhos dela. Quem sabe não signifique algo?

Meu corpo estremeceu duas vezes seguidas. Meus lábios secos de infelicidade tremiam com o frio que me circundava num pleno dia de verão. Quis fugir dali. Quis me jogar da janela ou apenas gritar e gritar com o brilho que circundava os olhos daquela mulher. Meu Deus, o que ela dizia com aqueles lábios velhos eu sabia com tanto temor... Dói ouvir algo que já se sabe e quer se esconder, me dói a exposição assustadora que a velha me propunha. Desnudando uma cena que eu queria simplesmente desfazer - porque sequer tenho a coragem de querer passá-la para as costas alheia ou deixá-la jogada num canto onde alguém pode recolher...

- O que a moça viu é algo que não se desfaz... Vai ficar incrustado até a Morte quiser - pode ser hoje, amanhã, depois de amanhã, um mês, trinta anos... E não adianta querer fugir, você vai ser encontrada em cada canto desse mundo. Ah, mas que lindos olhos! Me lembram dois figos maduros...

Solucei quando a traquéia me apertou a garganta. Era como se a voz daquilo que eu vi ecoasse outra vez na minha mente, como se estivesse presente, como se transcorresse uma narração: Do jantar à sala da casa, da face de quem ali estava e que todos tinham olhos da cor de figo maduro... Dançamos e rimos... E Meu Deus! Depois eram sangue e corpos oferecidos na mesma mesa da sala em que fora servido o jantar.
A visão embaçada de uma taça repleta de esferas verdes em cima da mesa à esquerda me fez de súbito vomitar. O líquido gástrico vazou de meus lábios e escorreu displicente pelo colo, alcançando o recanto dos seios. A mulher apenas sorriu mais uma vez, perguntou se eu não gostava de figo e recolhendo as cartas que colocara na mesa (sendo que sequer eu vira consultá-las) - levantou da sua cadeira e abriu a porta de madeira, indicando para que eu saísse. Porém, um gosto salino e morno invadiu meus olhos e coração com uma força que dilacerava e destruía cada parte viva.
Não consegui levantar de imediato - a carne da minha perna palpitava e doía como se algum taco houvesse brutamente as acertado...

- Não tenho o dia todo para a moça! - A velha se irritou, deixou a porta aberta e tomou a bolsa que eu levava inerte no braço; revirou-a e retirou algumas cédulas - Me desculpe meu amor, mas tenho um compromisso agora. Ah..., e mande lembranças ao meu filho.

Eu ainda chorava incapaz de poder dizer qualquer coisa. As palavras que a velha dissera entrelaçavam com a cena que meus figos viram, revoltavam-se e me culpavam nitidamente. Estava morrendo aos poucos quando a mão enrugada e enfeitada de anéis me pôs para fora do barraco. A luz do sol aterrorizou meus sentidos derrubando-me no chão sem asfalto, onde o barro era seco, rosado e decorado por pedras.
Me arrastei em frente à uma padaria e ali fiquei. Devem ter dado duas horas, três horas e quatro da tarde. Meus olhos viam e reviam tudo. E Meu Deus, como era doloroso! Como era doloroso ver a morte me rondando, suspirando em meu pescoço... Nunca me abandonaria. Nunca, nunca! Fora a própria mãe da Morte que dissera, que dera o veredicto. A própria, a própria!

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