Capitalismo versus Solidariedade

Mar 06, 2009 13:30


Este ensaio foi inspirado pela coluna de João Pereira Coutinho, publicada na Folha de São Paulo de 03/03/2009**, em que o autor critica Adam Phillips e defende a capacidade solidária do capitalismo. Meu foco está no seguinte argumento de Coutinho:

“(...) o capitalismo, longe de enfraquecer os "sentimentos" morais que ligam os homens aos seus semelhantes, é a condição primeira para que esses "sentimentos" se realizem de forma prática, e não apenas "sentimental". O livre comércio permite a riqueza das nações; e só pode existir "compaixão" pelos mais pobres quando existe riqueza que nos permita não apenas chorar por eles, mas elevá-los a um estádio tolerável de existência. Diferentemente do contemporâneo Malthus, que temia a explosão demográfica dos pobres, Smith sabia que a única forma de integrá-los numa comunidade próspera era, precisamente, pela criação dessa comunidade próspera, que só a liberdade econômica seria capaz de promover.”

Gostaria de comentar essa coluna sugerindo outros pontos de crítica a Phillips que não foram apontados por Coutinho e que, possivelmente, se aplicam a ele também. Parece-me que ambos ignoram de onde vem essa ‘compaixão’, que em sua forma contemporânea se manifesta por meio de movimentos dos mais variados e em geral se organiza sob a forma de ONGs - seja em prol da defesa de direitos humanos, combate a fome, proteção do meio ambiente, apoio a deficientes, grupos marginalizados, ou qualquer outra causa que implique ajuda ao outro.

Coutinho aponta que, tanto para Phillips quanto Adam Smith, existem “sentimentos inatos e morais” que se manifestam “ na nossa capacidade para, por meio de um exercício de ‘substituição’, nos imaginarmos no lugar dos que mais sofrem.” O erro de todos eles, inclusive de Coutinho, está em acreditar que tais sentimentos são inatos.

Embora idéias como “compaixão” e “caridade” estejam presentes em diversos modelos éticos - sendo o cristianismo, a meu ver, um dos mais frutíferos e consistentes, no que se refere à capacidade de “estender à mão ao outro” -, o sentimento contemporâneo de que o outro merece ajuda ou, mais importante, de que eu poderia estar no lugar do outro não é um sentimento inato, mas um dos efeitos de um processo que, na visão do senso comum e de muitos pensadores, culmina no que seria o oposto da solidariedade: o individualismo.

Para manter um rigor necessário a essa discussão, deixarei de lado o termo ‘individualismo’ - cujo sufixo ‘-ismo’ deixa espaço ao seu sentido de doutrina ou ideologia - e me concentrarei em idéias como “individuação” e “individualidade”, que denotam de maneira mais neutra o processo de emancipação do homem moderno.

Como se sabe, o capitalismo, que segundo Coutinho é condição de possibilidade de combate à miséria, se desenvolveu lado a lado com a racionalização da vida e a emancipação do indivíduo em relação a formas tradicionais de pensamento. Faz parte desse processo a constituição de uma nova consciência, uma nova interioridade: o que antes era controle social externo - normas comunitárias, religiosas e familiares - torna-se cada vez mais controle social interno, representado pela capacidade de ponderar, refletir, questionar e racionalizar estas mesmas normas e transformá-las numa ética interna, pessoal.

É este o aspecto crucial daquilo que hoje chamamos de solidariedade. É com o enriquecimento deste mundo interno, dessa capacidade reflexiva e racional, que a consideração da vida exterior, e com ela, o outro, se torna possível nos níveis que assistimos hoje. Não é possível sentir o tipo de compaixão contemporânea numa sociedade rigidamente dividida em classes. Não é possível colocar-se no lugar do outro quando o código hegemônico diz que nobres e camponeses possuem uma natureza e um caráter inatos e rigorosamente distintos. Não há como negar, pois, que o sentimento de compaixão - e não a ética da caridade - depende do desenvolvimento de uma sociedade democrática.

Desenvolvimento capitalista, formação do Estado moderno, democratização política, todos estes processos, interligados e interdependentes, se articulam com esta individualidade que aponto aqui como condição de possibilidade da solidariedade contemporânea. Pois não é o capitalismo ou a democracia que impulsionam os movimentos de “ajuda ao próximo”, mas aquele sentimento de que o outro é igual a mim, no sentido de que partilhamos uma mesma “humanidade”. Este sentimento não é inato, e esta “humanidade” não é a-histórica.

Não apenas o capitalismo oferece meios ‘práticos’ de exercício da compaixão, mas o próprio sentimento que impulsiona os atos de solidariedade contemporâneos está intimamente ligado ao processo do qual o capitalismo é apenas um de vários aspectos. Dito de outra forma, a capacidade de “colocar-se no lugar do outro” e assim solidarizar-se com africanos famintos, mães que perdem seus filhos violentamente, palestinos, ou quem quer que seja, por mais distante que esteja geografica- e/ou socialmente, é um dos efeitos da emancipação psicológica do indivíduo que caracteriza o Ocidente moderno.

** http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0303200916.htm

** Também disponível em is.gd/mp8c

modernidade, solidariedade, ética, capitalismo

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