O que é 'vida boa' para os brasileiros?

Nov 26, 2008 11:28


A revista Veja desta semana traz uma reportagem sobre a vida de Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni - que completaram 200 dias de prisão preventiva acusados de matar Isabella Nardoni. Nada de especial numa reportagem dessas, exceto pela capa, que traz a seguinte frase: “200 dias na cadeia: a (boa vida) dos acusados do Caso Isabella”.

http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/261108/capa.html

A reportagem descreve seu cotidiano e traz algumas informações sobre a família dos acusados e a estratégia da acusação para o julgamento, mas não chega exatamente a explicar o que seria essa “boa vida” na cadeia. Fica, por outro lado, a impressão de que o que a reportagem considera “boa vida” é o fato de que o casal tem acesso a TV, celas com número ideal de presos - e não superlotadas e imundas como nas cadeias comuns - além de não terem de trabalhar - a prisão oferece oficinas de trabalho, mas somente para presos já condenados.

Ora, não seria preciso nem mesmo ler a reportagem para constatar que a capa da revista estampa pelo menos dois traços que considero marcantes da sociedade brasileira: 1) o autoritarismo e 2) o ideal de vida sem trabalho.

Vejamos como é a “boa vida” do casal - citarei aqui o texto da própria reportagem, disponível em http://veja.abril.com.br/261108/p_092.shtml:

1)      Ele [Alexandre] está mais gordo e bem mais à vontade do que na sua primeira, e traumática, noite na Penitenciária Dr. José Augusto Salgado. Na ocasião, presos prepararam para ele uma recepção inesquecível. À meia-noite, passaram a repetir um refrão em uníssono: "Pára, pai! Pára, pai! Pára, pai!". A frase havia sido relatada à polícia por vizinhos dos Nardoni, que disseram tê-la ouvido de uma criança que estava no apartamento do casal, pouco antes da morte de Isabella. Trancafiado em sua cela e com o coro dos presos, que durou um minuto, martelando-lhe os ouvidos, Nardoni caiu em prantos.

2)      Atualmente, ele divide a cela - equipada com televisão, rádio, três beliches duplos e chuveiro frio - com mais quatro presos.

3)      a penitenciária de Tremembé, considerada modelo, tem leitos de sobra e emprego para tantos quantos queiram trabalhar. Mas a atividade é obrigatória apenas para os presos condenados. Entre os provisórios, trabalha quem quer. Alexandre, até hoje, não quis. Por causa disso, sua rotina é um pouco diferente da dos demais A maioria dos detentos acorda às 6 da manhã, quando é feita a contagem dos presos, toma café, segue para o trabalho nas oficinas e, mais tarde, para alguma aula (de línguas, música ou computação). Entre 16 e 17 horas, eles vão para o banho de sol, quando aproveitam para jogar bola. Depois disso, é jantar e cama. Como Nardoni não trabalha nem estuda (vez ou outra comparece às aulas de música), continua na cama até por volta das 10 da manhã.

4)      Muitas vezes, dispensa uma das refeições, já que recebe comida de sobra dos pais, que o visitam semanalmente. Antonio Nardoni e a mulher chegam carregados com uma caixa e sacolas de frutas, bolachas, chocolates, refrigerantes e outras guloseimas para o filho dividir com a cela toda. Também deixam remédios, pasta de dentes, repelente contra insetos (a prisão fica em uma área repleta de mata, o que atrai pernilongos) e revistas, que Nardoni pouco lê. Ele prefere ver TV, o que faz praticamente o dia todo.

5)      A madrasta de Isabella divide a cela com quatro detentas e trabalha na limpeza e na distribuição de alimentos. Dias antes da sua chegada, a direção da cadeia achou por bem deixar as presas sem ver televisão. Temia que, diante da repercussão do crime, elas reagissem mal à presença da mulher. Ao contrário do marido, Anna Carolina não enfrentou demonstrações barulhentas, mas teve de engolir a frieza de algumas presas que até hoje viram o rosto à sua passagem.

6)      Ao contrário do marido, que, nos domingos de visita, ganha enormes "jumbos" (como os presos chamam os alimentos e provisões trazidos pela família), Anna Carolina recebe de seus pais pacotes bem mais modestos. No último dia 9, por exemplo, quando completou 25 anos, teve de se contentar em comemorar a data com um singelo bolo Pullman, que ela enfeitou com uma mistura de creme de leite e chocolate em pó. O pai de Anna Carolina sempre teve uma vida financeira instável - e uma coleção de pendências com a Justiça.

A reportagem é concluída com a seguinte frase: “Se forem considerados culpados, Nardoni e Anna Carolina poderão sentir saudade dos tempos da prisão provisória. Não porque deverão ir para uma penitenciária pior - é provável que continuem no mesmo lugar. Mas, nesse caso, saberão que será por muito, muito tempo.”

“Saudades do tempo da prisão provisória”... saudades da “boa vida” dessa prisão. Boa vida que a revista remete à não obrigatoriedade do trabalho, ao encarceramento em condições dignas, ao acesso a itens como TV, refrigerantes e biscoitos. De fato, os acusados - considerados já culpados pela sociedade, postura reproduzida fielmente pelos jornalistas que adicionam a essa reportagem - e tantas outras sobre o caso - o relato da mãe de Isabella e a foto da menina - parecem não estar recebendo a punição que os brasileiros gostariam que tivessem. Questiono se essa punição - provavelmente a prisão perpétua - será suficiente para aplacar a ânsia de retaliação que perpassa o discurso da mídia e das pessoas em geral. Afinal, o encarceramento, o isolamento, a segregação social, o estigma de infanticida, a posição de pária entre os párias e, quem sabe, a culpa e o desespero do casal, nada disso é suficiente para uma sociedade que diz “bandido bom é bandido morto” de todas as formas possíveis. Ao chamar a vida na prisão de “boa”, a reportagem afirma, ou 1) que ela é boa para eles (os detentos), ou seja, “boa demais” para a escória, que merece a violência, a degradação humana e o desprezo da sociedade ou 2) que ela é de fato “boa”: não é necessário trabalhar, a comida é grátis, e pode-se até jogar bola à tarde.

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