Réquiem (2008)

Apr 09, 2013 21:57



"Contudo os homens matam o que amam
Seja por todos isto ouvido,
Alguns o fazem com acerbo olhar,
Outros com frases de lisonja
O covarde assassina com um beijo,
O bravo mata com punhal!

Uns matam seu amor, quando são jovens,
Outros quando velhos estão;
Com as mãos do Desejo uns estrangulam
Outros do Ouro com as mãos;
Os de mais compaixão usam a faca,
O morto assim logo se esfria.

Uns amam pouco tempo, outros demais;
Este o amor compra, aquele o vende;
Uns matam a chorar, com muitas lágrimas,
Outros sem mesmo suspirar:
Porque cada um de nós mata o que ama,
Mas nem todos hão de morrer."

(Oscar Wilde, em "A balada da prisão de Reading")

Havia um cheiro desagradável no ar. Cheiro de morte. Olhou para os olhos fechados do homem ao seu lado, as mãos entrelaçadas, pousadas sobre a sua barriga. Soube que ele estava morto. Por mais que seu peito ainda se enchesse de ar, por mais que seu rosto estivesse corado com o sangue que ainda circulava em suas veias; sabia que estava morto para o seu coração.
    Nada sentia ao beijar seus lábios. Eram frios, por mais macios que fossem, por mais carinhosos que lhe parecessem. Eram gelados. As mãos que tocavam o seu corpo não mais lhe tocavam a alma. Excitavam-no, excitavam-se com ele. E quando acabava, tudo o que sentia era nojo.
    Não tinha talento para necrofilia. Não acreditava em vida após a morte. Não acreditava em mudanças. Começava a se perguntar se não havia sido sempre assim, se ele não estivera enganando a si mesmo. Perguntava-se em que momento gostara de estar com outro homem, em que momento havia pensado que conseguiria lidar com isso. Seus pais já estavam velhos, mas ainda sonhavam um dia vê-lo casado com uma bela garota. Queriam netos correndo pela casa. O que diriam se soubessem que estava morando junto de seu amigo do colégio, aquele que já havia frequentado tanto a sua casa, que já havia bebido com sua família. Ultrajante.
    Viu os olhos dele se abrirem, encontrarem-se com os seus próprios. Pensou ter visto o próprio reflexo naquela imensidão negra. A própria morte. A doença se espalhava por seu corpo, corroia-lhe os ossos, apodrecia-lhe as entranhas. Estava se tornando um cadáver como ele. Morria quando o via sorrir. Quando via que por mais peçonhento que tudo fosse, ele ainda sorria. Sorria por estar ao lado de um morto-vivo.
    Tentava fugir quando aquelas mãos frias o tocavam. Quando não podia, deixava o corpo, e ia embora com o espírito. Mas ele percebia. Não havia como não perceber. Ele se desesperava, tentava fazer melhor, fazia de tudo para agradá-lo. Consolava-o quando todas as suas tentativas mostravam-se inúteis. Consolava. E depois trancava-se no banheiro. Sabia que ele estava chorando. Às vezes podia ouvir seus soluços, seus gemidos. Morto.
    Fugiu um dia de seu leito de podridão. Saiu pelas ruas e fingiu ainda viver. Alguns até mesmo acreditavam. Tão ingênuos. Encontrou mulheres, trouxe-as para o seu apartamento. O cheiro forte de seus perfumes parecia anular o cheiro de formol que havia pelas paredes. O toque de suas mãos delicadas parecia esquentar seu corpo frio. Esquentava e queimava. Queimava com o toque de uma mulher qualquer. Gemia por causa de uma mulher qualquer. Quase pensou amar uma mulher qualquer.
    Até que ele voltou para casa, e o viu com uma mulher. Ele gritou. Saiu de casa batendo a porta com raiva. Embebedou-se. Chegou em casa chorando e pedindo perdão. Perdão pelo crime que o outro havia cometido. Por um momento, quis que ele o incriminasse, quis que ele fosse embora.
    Um dia chegou em casa sentindo um aroma peculiar no ar. Não era o formol. Era o perfume. Forte, forte demais. Uma estranha aflição o tomou, algo que não sentia há tanto tempo: era ciúme.
    Ouviu-o gemer. Há tanto tempo não o ouvia. O som alto, melodioso, excitante. A voz expressando em ruídos enlouquecidos o que as palavras nunca poderiam dizer. Lembrou-se de como havia sido seu primeiro beijo bêbado, a primeira vez em que seus corpos se tocaram curiosos, divertindo-se com o errado, divertindo-se com o perigo. Quis ser novamente aquele adolescente rebelde, fazendo tudo o que sua vontade lhe mandasse fazer. Sem nenhum sentimento, sem nenhuma obrigação. Gostava de quando o seu coração batia por ele sem que o forçasse a fazê-lo apenas para agradar.
    Já nem sequer o agradava. Quem o fazia era aquele homem, aquele homem que via sobre o seu corpo, através da porta entreaberta do quarto. Aquele homem gostava de tocá-lo, aquele homem era vivo. Sentiu inveja de sua vitalidade. Sentiu ciúme. O antes falecido mostrava-se cada vez mais acordado. Podia ouvir o sangue correr louco em suas veias, podia ouvir sua respiração densa, ofegante. Ouvia-o suspirar, o som de seus beijos fortes. Sentiu saudade.
    Quis ele próprio deixá-lo daquele jeito. Tornar verdadeiro o seu desejo, o sorriso em seu rosto. Vivo. Por que só conseguia matar? Talvez o morto fosse ele próprio. Talvez a degeneração houvesse começado em suas próprias entranhas.
    Ouviu alguém chamar seu nome, um gemido descontrolado. Mais uma vez. De olhos fechados, o peito arfando, o corpo se contorcendo de prazer. O seu nome. O seu nome escapando daqueles lábios tão quentes. O seu nome sendo chamado, o seu corpo sendo ansiado. Aquele corpo frio. Aquele coração que já não batia. Naquele momento, ele chorou.
    O homem deixou a casa, levando consigo o cheiro de perfume, o cheiro de sexo. E ele permaneceu estirado sobre a cama, o formol impregnado em sua pele, os olhos vidrados, vazios. Lábios frios. Corpo gelado. Morto.
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