Aug 08, 2015 00:12
agora que penso, não me lembro do nome do senhor. lembro-me do medo que lhe tinha, em pequena, como se fosse dele a culpa pelas agulhas e por todas as injecções que o meu pediatra receitou durante toda a minha infância. embora esteja certa que um dia lhe tenha sabido o nome, muito provavelmente o apelido, entre nós chamavamos-lhe "o enfermeiro". o enfermeiro do bairro, que ainda hoje mora no prédio em frente, a quem eu fazia má cara e de quem fugia mal ouvia o som produzido pelo elevador acabado de accionar. que me ouvia chorar e berrar mais por sistema do que por dor. o enfermeiro do bairro, que me viu crescer, e a quem eu fui vendo envelhecer até se tornar num vulto, entre todos os vizinhos a quem nem sequer se fala, com quem se partilha o espaço de fechada à saída dos transportes públicos, de regresso a casa. hoje estava um homem estendido no chão, com a cabeça pousada numa almofada que alguém lhe trouxera, logo a seguir às escadas de que tombara, agarrado à mulher, que sangrava por todos os lados, agarrada a um lenço branco. quatro pisos acima, por entre os vizinhos que se aglomeravam e prestavam ajuda, a minha mãe lá o acabou por reconhecer o senhor enfermeiro. o temido senhor enfermeiro, hoje uma memória distante e simpática da minha infância, e do tempo que eu passei nesta casa com os meus avós, que num esfregar de olhos que corresponderão alguns anos quase se apagou, graças à velhice e à doença, foi-se embora de ambulância, deitado numa maca, agarrado às mãos da mulher.