Jan 30, 2004 15:49
Ela de novo, como uma moeda atirada ao ar e dois olhos que a observam enquanto rodopia sob as luzes tricolores dos semáforos. A cidade estende-se até ao rio e debruça-se sobre a ponte para os ver tocar a água gelada com a ponta dos dedos porque hoje toda esta água lhes pertence como lhes pertencem também todas as nuvens negras que abafam o céu e não o deixam respirar.
Mais ao fundo, junto ao túnel, um homem vestido de azul observa o trânsito inesgotável de relações amorosas que começam como acabam e desfilam diante dos seus olhos como manequins emocionalmente anorécticos numa passarela de asfalto, luzes intermitentes e acidentes violentos. Há quem chame amor a isto, às partidas e chegadas que se seguem umas às outras como se o mundo fosse um aeroporto de onde não parte ninguém e onde todos aterram pelo menos doze vezes no ano com o mesmo olhar desamparado e a mesma fome de partir.
O tempo será consumido como uma bolha de oxigénio, não há lugar para palavras inúteis ou promessas de dias melhores. O presente está aqui e chama-nos de braços abertos. Não há já espaço dentro de nós para a memória, o que vivermos hoje não será recordado porque a felicidade se consome mais depressa que um fósforo. O sorriso que me serves de bandeja sem que eu to peça é já um gomo de laranja que me adoça a boca. Ninguém se recordará de nós, nem o homem vestido de azul, nem a cidade que nos segue de perto como um cão porque o meu rosto é o teu rosto, como é também o rosto de todos os outros que se arrastam pelas ruas dois a dois e falam de amor como quem fala de fome, guerra ou morte.