Sep 15, 2004 03:13
A nossa casa era uma sólida mansão vitoriana, de madeira negra que ficava isolada no meio de um campo que na primavera se cobria de papoilas sanguíneas que a minha mãe usava para alegrar as jarras nos dias de velório. Nós vivíamos os quatro completamente dependentes daqueles campos, o meu irmão encontrando diversão nos pássaros no fundo do vale, a minha mãe bordando cortinas e colchas com motivos campestres para os enxovais de noivas rosadas, o meu pai alimentando o negócio dos mesmos habitantes das aldeias vizinhas.
Eu pairava por entre aquele mundo antitético de jarras floridas e janelas solarengas do primeiro andar e o cheiro penetrante a formol e decomposição, fluidos corporais e químicos da cave. O meu pai embalsamava os cadáveres que aqueles campos produziam na cave escura enquanto a minha mãe recebia alternadamente as bonitas noivas ou os chorosos familiares das vítimas com biscoitos e chá.
Os campos providenciavam tudo o que necessitávamos para sobreviver: o sol, os pássaros, as flores, as frutas, os mortos.
Eu como era o mais introvertido e a minha natureza não me permitia encontrar beleza no mundo exterior ao meu, ficava na cave com o meu pai observando durante as longas tardes após as aulas, como uma mulher rechonchuda mirrava frente à morte, como um belo estudante empalidecia e ficava roxo 24 horas depois do óbito.
Aprendi silenciosamente como mascarar a palidez, o fedor, as cicatrizes, e o meu pai instintivamente tomou-me como o seu natural percursor, já que eu era o único que me conseguia aproximar daquele espaço mal arejado voluntariamente, ensinando-me meticulosamente os truques e trâmites da arte de transformar algo sórdido numa obra prima.
Com o tempo, o meu pai morreu e fui eu que o preparei, limpando-lhe o corpo das máculas feias da velhice, deitando-o num acetinado caixão preto e assim, tomando o seu lugar. A morte e os seus parentes directos tornaram-se no mostruário dos meus dotes mais profundos, e eu pintava-os, drenava-os, honrava-os como aos indivíduos especiais e peculiares que todos eles deveriam ter sido um dia e que eu nunca tivera oportunidade de conhecer em vida, mas que conhecia mais intimamente agora na morte. Eu via assim a morte, não como algo desolador, mas como a grande janela para universos que de outro modo eu nunca desvendaria porque eu era quieto e reservado e não tinha realmente amigos para além daqueles que me confiavam os seus corpos no seu pior momento, os que ouviam sem nunca repetirem o que fora partilhado entre aquelas quatro paredes húmidas.
Apesar de não ter desenvolvido o interesse inato na sociedade, distinguia claramente as marcas que os abusos desta deixaram nos corpos dos meus clientes: as nódoas negras da mulher abusada, os cortes auto-infligidos da rapariga com tranças, as olheiras de um velho solitário. A morte era o gentil intermediário que nos unia e em cada pincelada eu sussurrava-lhe coisas que sabia que só eles, estes seres gelados, habitantes de um outro plano, poderiam compreender. Nunca as noivas tímidas que solicitam os serviços da minha mãe poderiam entender na sua candura virginal o que a dor realmente significava e por isso eu desprezava-as e não procurava a companhia delas como o meu irmão fazia e assim a própria cidade, com os seus cafés movimentados e raparigas desenvoltas me fecharam as suas portas, catalogando-me de bizarro e uma criatura bestial que só teria lugar no
campo, fechado numa cave negra, que é como um limbo, mas na Terra. Não que isto me importasse verdadeiramente.
Pelo menos até à Dora, e a Dora apareceu como uma visão diáfana dos Céus, linda toda de branco e ela era mais uma das noivas, mas no seu rosto havia uma luz incandescente que não era dos que meramente se contentam, esta noiva tinha em si a alegria campestre que eu só vira nas flores e a vida pulsava nela como um campo magnético, um farol. Primeiramente foi esta vivacidade que me atingiu e eu tropecei ao subir as escadas do rés de chão, mas nela havia uma doçura inegável e quando me estendeu a mão para a cumprimentar e lhe toquei, toda ela era quente e elástica, tão diferente do toque pegajoso e frio dos corpos que eu antes conhecia.
Não acredito que realmente tenha pensado que aquilo era amor porque nunca experimentara nada que exigisse a colaboração de outro ser humano vivo e agora ela desabrochava perante mim, os meus dedos e a minha alma, como uma iluminura real, e as visitas dela tornaram-se frequentes e a minha mãe rejubilou por ver este seu filho perdido enveredar pelo caminho normal dos homens tal como o seu irmão mais velho. Quando marcámos a data para o casamento, a minha mãe ofereceu-se para fazer o enxoval, mas Dora era prática e manteve o que encomendara para o seu inicial noivado, entretanto
desmanchado pelo seu inopinado amor por mim. Planeávamos um casamento pequeno, ali na casa em que eu nascera e fora criado, e ela insistia tenazmente para que eu me desfizesse da casa mortuária na cave e foi isto que me fez ter pesadelos à noite, porque os mortos eram os meus fieis amigos
e a mostra do meu talento e sem eles principiei a sentir um vazio que eu sabia ser incomensurável.
Bebia para dormir e como não dormia tornava-me febril e o calor do corpo dela enlouquecia-me. Depressa, muito depressa, talvez logo na semana seguinte a entaipar a porta da cave, eu soube o que ia suceder, a qualidade irreversível daquilo. Era a ideia do calor dela à noite na cama que me
obsecava.
Dora e o seu louro cabelo e o peito cálido como rosas adormecida na minha mesa era como uma visão celestial e a beleza tenra dela um crime de deixar o tempo consumir. Ela bebera o láudano todo calmamente ao jantar, sem suspeitar que morreria ao fim de seis horas. Morreu durante o sono o que
lhe permitiu manter as cores saudáveis e assim o meu trabalho foi mais simples e o resultado final mais natural.
Vesti-lhe o vestido de noiva que lhe fora despido há só umas noites pela primeira vez e a sua luz interior pareceu rebarbar naquele minúsculo espaço difuso como fizera pela primeira vez que a vira ao cimo das escadas. Depois abracei-a e inspirei o familiar cheiro anti-séptico do formol que vinha do corpo embalsamado dela, o toque quente das suas mãos substituído pela gélida carícia da morte, que tanto me acalmava. Carreguei-a para o nosso quarto nos meus braços, tal como a carregara na nossa recente noite de núpcias, mas desta vez ela não se ria alegremente, a sua cabeça loura tombava contra o meu ombro solene e serena. Deitei-a no leito e tombei exausto de muitas noites mal dormidas sobre o seu peito onde mais nenhum retumbar irritante me mantinha acordado, onde mais nenhum respirar ondulante me desconcertava, onde mais nenhum calor corporal me perturbava e dormi um sono solto até ao outro dia de manha quando tive de a depositar num bonito caixão negro e enterrá-la debaixo do campo cheio de papoilas.
Diana Anselmo
Há quem se sinta inspirado por mim. Até me matam. Que bom! :')