Oct 29, 2010 22:40
"O que se aprende não é com o que se pensa, mas sim com os mal-entendidos."
Vale Abraão, M. Oliveira
Sentado a olhar pela janela, Carlos tentava imaginar a frescura do ar da manhã que corria pela parte de fora do autocarro, numa tentativa já quase desesperada de suportar o cheiro a mofo suado de estalagem medieval sobrepopulada que se fazia sentir. Ninguém parecia incomodado pois todas as caras eram neutras, todos os sentimentos e subjectividades de julgamento eram impiedosamente encarcerados no íntimo do Homem social; "um Homem será tão mais forte quanto mais amotivo for". Era esta a cátedra que todos os dias a praticalidade do quotidiano tentava impregnar em espíritos naïve como o de Carlos. No entanto, sentia-se cada vez mais isolado, marginalizado por si próprio na consciência de que a falta de esforço que caracterizava a sua teimosia era única: todos acabam por sucumbir à evidência do Homem moderno, do Homem urbano, do Homem eficaz; Carlos, pelo contrário, permanecia resoluto na sua concepção da emotividade, ou da sua absoluta inevitabilidade. Para ele, a emoção é eterna e omnipresente: é incorruptível.
Perdia-se nas gotículas de água da parte de dentro do vidro embaciado, sujo. Apesar de embaciado precisamente pela quantidade de bocas e narizes enfiados naquele espaço urbano exíguo, a Carlos agradava-lhe que o vidro estivesse assim, fazia-lhe lembrar o Natal. Não que as recordações fossem boas, mas porque o futuro, por ser sempre projecto a executar, com a vantagem de nunca ter sido executado e decidido, pois senão não seria futuro mas sim aquele presente que já lá foi já é passado, reserva sempre a capacidade de ser positivo, de ser brilhante. Positivos e brilhantes esses Natais que o futuro me reserva, pensava entretido Carlos, enquanto um cheiro doce metálico o percorria avassaladoramente. Como que despertado, reparou na mulher sentada no banco em frente. Estava de costas mas ligeiramente enviezada, de forma que lhe era possível adivinhar o contorno dos seus traços meigos através dos cabelos claros e lisos, que lhe davam pelos ombros, numa silhueta que tinha tanto de doce e suave como de faraónica e geométrica. Quedava-se calma, passiva, como é costume agir nos transportes públicos, mas deixava transparecer, aos olhos de Carlos, uma inquietude denunciada por um menear frequente da cabeça, como se buscasse algo. Não buscava. Inquietava-se com o mesmo cheiro e densidade do ar viciado de dentro do autocarro que perturbava Carlos, e de repente Carlos sentiu-se embaciar como o vidro, sentiu que os olhos se lhe abriam mais clarividentes, e ela de quando em quando olhava quase na sua direcção, sem se cruzarem os olhares, mas o suficiente para Carlos se perder no azul vibrante dos seus olhos, sentia o seu aroma a amêndoas e menta, que já não era o seu cheiro real mas a imaginação de Carlos a fazer amor com o seu cheiro, Carlos queira-se perder naquele vidro, Carlos já não queria o ar fresco da manhã do lado de fora do autocarro, Carlos queria o autocarro para si, queria permanecer ali longo tempo numa posição desconfortável e a beber ferormonas como Zeus no Olimpo a beber o néctar dos Deuses. Próxima paragem, sai ela, sai ele, não porque fosse a sua mas porque sim, sente o fresco da manhã na cara, no seu espírito, escolhe o percurso mais curto para casa e mete-se a caminho, Então e a mulher?, Que interessa, já se foi, já não é, é passado que já foi futuro mas que o presente comeu.
Abriu a porta, fechou-a lentamente, como se demonstrando respeito pelo objecto que incessantemente não deixa a rua entrar em casa, Clarisse está a fumar um cigarro no sofá, a olhar o infinito. Carlos expira pesadamente, fazendo por se notar o seu cansaço. Clarisse continua a fumar, imóvel. Hoje embaciei-me por dentro, no autocarro. Clarisse olha-o, estupefacta. Ai sim?, Sim, e reparei que as pessoas hoje já não se embaciam. Clarisse continuava a olhá-lo, tensa, não sabe porquê tensa, Porquê?, pensava, Não sei, respondia. Mas embaciar como?, avançou, decidida. Carlos sentou-se na outra extremidade do sofá de três lugares, ligeiramente enviezado para estar virado para ela. Embaciar-se com as coisas, os Homens já não sentem, ou por outra, não querem sentir, ou aliás, não querem demonstrar que sentem, não percebo porquê? Clarisse perdia-se um pouco no discurso, mas era pronunciado com tal intensidade que não teve coragem de pedir explicações, achou a dúvida parte da mensagem, e prosseguiu em frente, sempre em frente, Mas as pessoas têm de se proteger, e não se sente sempre, há sentimentos que modelamos, que não queremos ter e então fugimos, contêmo-los, tem que ser e é assim que se sobrevive, Isso é uma estupidez!, não se controla as emoções, o vapor impregna-se no vidro, não é um sinal de estacionamento proibido que faz o vidro ficar seco, transparente, Mas onde é que queres chegar?!, já com impaciência, o anúncio da cólera dos Homens. Carlos olhou para o chão do seu lado direito, como dizem que fazem as pessoas quando inventam sem mentir, Não acredito que me digas que só sentes as coisas que queres sentir, Não é bem... Carlos não a deixa continuar, embebido na eloquência da sua indignação, Não sentes?, vais-me dizer que te tornaste assim tão pouco animal, não sentes as coisas mesmo que não queiras?, não sentes repulsa por um cheiro nauseabundo?, por comida putrefacta?, não te sentes incomodada por um homem de má índole?, mesmo que não queiras?, e por merda?, merda!, não te sentes incomodada pela merda?, mesmo que não queiras?, dizes-me isso?!, Não, mas isso são coisas que... tentava ela sem saber a que porto iriam dar, e Carlos interrompia-a, Não sentes desconforto com a menstruação?! Silêncio. Imbecil, pensou ela. Mas a menstruação só a tenho se quiser, valha-nos isso dos novos tempos. Então porque a tens? Que im-be-cil..., praguejou interiormente, separando as sílabas para caber mais força na expressão. Olhou Carlos, notava-se que era sincero, espantosamente sincero, Dá-lhe um ar de paladino perdido, pensava. Porque quero ser mulher, porque me faz sentir mulher, sei lá, e ouvi dizer que também faz mal não menstruar nunca, Vês?!, retorquiu Carlos entusiasmado, não o evitas porque não queres, porque te causa inevitavelmente uma sensação, ela impregna a sua sensação em ti, quer tu queiras quer não, Pois está muito bem, sabes o que te digo? Ainda não disseste, Digo-te que nesse caso isso é apenas uma prova de que as mulheres são mais Humanas que os homens, têm essa capacidade de se impressionarem ciclicamente, quer queiram quer não, têm a sua femininidade esfregada na cara todos os meses, pior, cada 28 dias, nem a 25 dias de descanso têm direito, vocês homens, podem evitar-se sempre, se o quiserem, podem viver para sempre fugidos da vossa essência, podem-se iludir, o vosso corpo não vos exige nem impõe nada, só têm de comer e de cagar e mijar, e soltou uma gargalhada sonora, contente com o misto de cheque-mate e parvoíce que lhe saía da boca. Carlos recostou-se no sofá, não com uma expressão de derrota infantil, como Clarisse esperaria, após o que se beijavam e amavam, mas com uma expressão de profunda ponderação, talvez até de pesar. Nós também menstruamos. Clarisse desmanchou-se em riso, Carlos não sorria, Essa vais ter que me explicar, desafiou com ar de troça. O homem menstrua cada vez que ama. Não inventes, porque raio... Porque amar é sofrer, mas mais para os homens, porque os homens no fundo perseguem sempre o ideal da independência emocional, da fortaleza, o ideal do belo selvagem, do saudável nómada viril, e quando amam, e se apercebem que das duas uma, ou não são capazes de ser o que querem, ou não querem ser aquilo que não passa de uma farsa pseudo-machista, sangram, menstruam, enlouquecem e não têm alternativa senão amar ou morrer, e portanto menstruam, pior que as mulheres, que podem escolher, os homens não podem, são assaltados pelo sangue e não têm alternativa senão aceitá-lo como irmão, não temos escolha. Clarisse olhava pela janela, perturbada não sabia se pela ideotice do discurso, se pelo complacente entendimento que lhe dava entrelinhas; de uma forma ou de outra, estava incomodada com o facto de não entender a paixão do discurso de Carlos. Olhava-o com curiosidade, o cigarro apagou-se-lhe entre os dedos, queimou-a, ela sentiu, não emitiu um som; deitou a beata no cinzeiro, pensou, Não te apagues nessa luz, não me faças apagar a minha luz... Silêncio.
Menstruaste por mim?... Carlos olhou-a nos olhos, sentiu aquele vibrante de terra que lhe enchia a suavidade da pele morena. Menstruei, e ainda menstruo, que este futuro não há de o presente comer.