Carlos I

Aug 30, 2010 20:24


   A iminiência de chuva vai pesando sobre o corpo de Carlos. Estendido sobre a relva, tenta heroicamente prolongar a adoração pelo sol que se põe: tenta, agora e sempre, mas intensa (e simbolicamente) agora, ignorar a opressão que o ar, carregado de humidade, vai imprimindo no seu corpo. As moscas vão ajudando numa nuvem de pressentimento, zurzindo em seu redor, tecendo a pouco e pouco uma rede inexorável de uma tensão - amorosa - que se impregna em todos os seus actos. É esta intensidade vibrante que se esconde no âmago de todas as acções do "sujeito apaixonado" de Barthes, é essa a causa última do significado monumental que certos acontecimentos ou sensações - aparentemente fúteis, desinteressantes e inconsequentes (ignoráveis) - têm para o carrasco do amor, que É o sujeito apaixonado.
   O apaixonado, assim, é um carrasco do amor por ser o responsável, e o único imputado, por revelar ao mundo e ao Outro o seu estado decadente de demência, de descontrolo. Quando a beatitude do amor, com o seu estoicismo e altruísmo, revela num rasgo de iluminação divina a possibilidade da acção mais discreta, mais magnânima, mais de acordo com o "querer bem" a que nos deixamos render, logo vem o pragmatismo surdo da efeverscência da paixão, que distorce, conspurca e embebeda de lirismo e espontaneidade essas proezas, numa eloquência pela carne, numa elegia ao suor dos corpos apaixonados que se bebe enquanto se volatiliza o amor, caindo em espiral no precipício auto-destrutivo mais saboroso da Humanidade (sim, através desta revolução do corpo, a mente é arrastada pelos campos do Fantástico e do Grande e Magnífico). O sol já se rendia à timidez e Carlos continuava imóvel, envolto pela nuvem de moscas que apaixonadamente o abraçavam, satisfeito por se imobilizar tanto tempo numa posição desconfortável que teimava em manter. Para Carlos, este era um verdadeiro gesto apaixonado, obstinava-se numa situação dolorosa e desagradável pelo simples desejo de atingir uma qualquer bem-aventurança, que existia apenas na sua cabeça e que ninguém conhecia - nem podia conhecer.
   A aragem do fim de tarde começava a entrar pelo seu corpo, até aos ossos, e Carlos, ainda imbecilmente embevecido pelos tons rosa do horizonte, começava a achar justificação (visto que não via já, ao longe, nenhuma réstea do amarelo encandeante do sol) para se levantar, finalmente mudar de situação, acabando assim com aquele tormento.
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