Dec 17, 2009 15:53
irrita-me tanta coisa com os novos cursos de medicina, e as vagas, e as opiniões de quem não faz a minima ideia da realidade.
pessoalmente sou contra a abertura de novos cursos, ainda para mais quando são de quatro anos.
a realidade que a maioria das pessoas desconhece, é que não podem simplesmente aumentar as vagas nos cursos de medicina, sem pensar em mais nada. na minha faculdade, há já uns anos que o maior anfiteatro não tinha capacidade para o total de alunos de um ano. não havia simplesmente espaço. isso é uma das coisas. a outra, é que metade do nosso curso é passado em hospitais. são estágios, tutorados por médicos. se há faculdades que têm ao seu dispor diversos hospitais e serviços, outras estão sediadas num hospital e lidam principalmente com este hospital. mesmo havendo muitos hospitais, nem todos os serviços de todos os hospitais recebem alunos. e com a organização (e agregação) de hospitais, há especialidades que só existem num em cada três hospitais - ou seja, mesmo até havendo hospitais, pode não haver serviços.
quantos mais alunos houver, maior será o número de alunos nesses hospitais. e em vez de se aprender em grupos de dois ou três, aprende-se em grupos de cinco ou seis. e acreditem que faz diferença. por um lado, para o doente. se tivessem que fazer um toque rectal, gostavam que estivem dois marmanjos a olhar, ou preferiam cinco ou seis? por outro lado, os gabinetes e enfermarias, blocos operatórios não têm simplesmente acomodação para tanta gente. o que faz com que esse grupo se tenha que sub-dividir, para aqui e para ali, não tirando tanto partido nem aprendendo tanto. depois é tudo à vez, todos os procedimentos, exames, têm que ser divididos por maior número de pessoas. tendo em conta que a maioria dos estágios tem entre duas a quatro semanas, entre exames, enfermarias, consultas, urgência, acaba-se por estar apenas umas horas a aprender algo - o que é claramente insuficiente.
a juntar a isso, há o facto de que passamos pela mesma especialidade (serviço) em mais que um ano. ou seja, num dado momento pode haver alunos de quarto, quinto ou sexto ano, a coexistir. e todos têm ter um tutor, e ver e aprender procedimentos. estão a ver a confusão?
juntem a isto outro problema. a formação dos médicos não acaba após os seis anos de curso. a formação demora em média uns doze anos. porquê? porque é preciso formar especialistas. isso já não é da competência do ministério do ensino superior, mas sim do ministério da saúde. mas significa que todos os alunos formados, mais os estrangeiros, mais as centenas de portugueses que fizeram o curso lá fora, têm que passar por um sistema de ensino personalizado. um tutor para um médico. ensinar cada truque, cada procedimento, cada pequena coisa que forma cada especialista. depende da especialidade e dos serviços e hospitais, mas habitualmente cada ano só há um ou dois novos (pré-)especialistas. porque é um investimento, porque é necessário um acompanhamento.
porque nos dois primeiros anos, nem autonomia temos, ou seja, precisamos de alguém que se responsabilize por nós, permanentemente. e isto tem que ser bem planeado. e como vai ser se se aumentar simplesmente o número de médicos a formar-se, sem se pensar nisto? vai chegar um ponto em que simplesmente os serviços de saúde não vão ter capacidade de resposta, e vão começar a abrir menos vagas que número de médicos formados...
agora imaginem o que é, uma especialidade com três internos da especialidade, mais se calhar um interno de outra especialidade ali a fazer um estágio, mais dois internos do ano comum, mais dois alunos de sexto ano, mais quatro alunos de quarto ano... imaginem a quantidade de médicos necessária para se responsabilizar por tanta gente. a capacidade formativa que é necessária ter, e que, em muitos sítios, simplesmente não existe.
não é só aumentar as vagas, é preciso pensar nas condições e no depois.
há muitos cursos que têm as mesmas vagas que medicina, no entanto nesses não há tanta procura, portanto simplesmente não faz mal. como há procura, aumentam-se as vagas - é o equivalente a num sítio com muitro trânsito e filas, simplesmente se porem mais duas faixas de rodagem. pois. vai continuar a haver transito, simplesmente em vez de estarem só em três faixas, agora estão em cinco. então e pensar em alternativas? outras soluções? não?
abrem-se mais vagas e assim o povo fica contente.
se é injusto que tanta gente que quer não entre? claro que é, isso sem dúvida, e de certeza que muitos desses seriam melhores médicos que muitos que o são. mas a verdade é que sempre houve injustiça, e sempre haverá. antigamente só quem morava em lisboa / porto /coimbra e/ou tinha possibilidades financeiras é que teria hipoteses de tirar o curso de medicina. para os meus pais, por exemplo, nunca existiu essa hipotese. não é justo, pronto, mas a vida também não é. pelo menos, à partida, há iguais hipoteses.
se há falta de médicos em portugal? sinceramente não sei. há falta relativa, sim, mas isso não quer dizer que em números absolutos haja. portugal tem um ratio de especialistas hospitalares : população muito acima da média de outros países. faz falta a medicina de base, os médicos de família, sim, e tem-se tentando combater isso (por exemplo, 30 % das vagas anuais das especialidades são para médicos de família). mas isso é devido à organização do sistema de saúde (temos uma medicina muito baseada em especialistas e pouco em cuidados primários). não é devido a falta de médicos em si, ou a poucas vagas no curso de medicina. combater isso envolve uma reestruturação, não abertura indiscriminada de vagas.
até porque este novo curso seria para aumentar o número de médicos de família (MGF - medicina geral e familiar), se obrigatoriamente, após o curso, todos os recém formados fossem para MGF. mas aquilo que vai acontecer, é que vão fazer o mesmo exame que todos nós e com base isso, escolher a especialidade. e acreditem que são muito poucos, entre aqueles que têm possibilidade de escolha, que o fazem.
por outro lado, o facto de serem quatro anos, não vai ajudar a combater a dita falta de médicos. é que aos quatro anos de curso, junta-se o ano do ano comum, e depois mais quatro a seis anos da especiliadade. pois. o que vai ajudar a combater, é o aumento do número de vagas que se tem vindo a verificar nos últimos anos. não o facto de o curso ser de quatro anos.
além de que, isso só vai propiciar a que em vez de andarem dois anos a tentar, e depois tirarem um curso de seis anos, as pessoas entrem para um desses cursos que depois possibilita o acesso ao curso de medicina, que deverá ser de três a quatro anos, e depois façam o curso de medicina de quatro anos só. o número total de anos é o mesmo. o problema é que se calhar as vagas dos outros cursos, também abriram porque eram necessárias pessoas nessas áreas. pessoas que nunca vão enveredar por essa área, porque estão concentradas em medicina. e depois as pessoas que queriam mesmo esse curso, vão ser ultrapassadas pelas médias altas dos que quase-quase entrar em medicina, e vão acabar por escolher outra coisa que não gostam, e... vêem o circulo vicioso?
basicamente é isso, não se resolve nada, só se finge resolver, e adia-se a resolução, sem ninguém dar conta.