Se o inimigo é demoníaco, sua luta é mortal

Mar 18, 2010 10:40

Eu sou a neta mais velha da casa da minha avó materna e por muitos anos só tive primos meninos. E eram uns moleques muito dos nojentos. Cheios de não-me-toques e nove horas pra poder brincar,  toda uma constituição dos jogos infantis em voga nos quintais gigantescos da casa que minha mãe alugava de uma tia-avó. E esses primos, ajudados por alguns meninos que moravam lá na rua, me presentearam com dois dos meus maiores traumas de infância numa só tarde de domingo.

Primeiro, o almoço de família. Eu morava com interiorrrzão de Minas, sô, e nesse dia ia rolar toda uma parentada para a refeição dominical. A família da minha mãe se divide entre militares e gente da roça, com uma intersecção de pessoas que saíram da roça para se tornarem militares. Assim, tinha muito churrasco, muita lingüiça, muita galinhada e muito bucho, que a menininha delicada que eu era naquela época chamava de dobradinha, morrendo de nojo só de cogitar o negócio no plano das idéias. Bucho, caso haja quem não saiba, é meio que a parte de dentro do estômago do boi, se parece com um pedaço de carne albina cheio de casinhas de abelha, é mais borrachudo que pneu e tem o cheiro que super exemplifica o enxofre dos dos círculos mais profundos no inferno. E, ao menos em Minas, velhinhas andam pela rua vendendo bucho acondicionado em latões de óleo. Todo um ritual de nojeira.

Naquele almoço tinha um tacho enorme de bucho e enquanto eu revirava os olhos para aquela coisa amorfa em cima da mesa, meus primos, aqueles engomadinhos insuportáveis, aqueles bostinhas com o cabelinho partido de lado com gel, usando suas roupinhas da Tigor T. Tigre me começam a comer dobradinha como quem está enchendo a cara de maná. Devo ter feito o maior carão de choque explícito, porque em dois minutos a mesa inteira estava me olhando e perguntando o que era e como assim que eu não comia bucho, era um absurdo, ovelha negra da família feelings. E meus primos rindo e perpetrando altos bullyings em torno do fato de eu não ter coragem de colocar aquela merda na boca. Eu tinha só sete aninhos, a pressão foi grande demais para a minha pequena pessoa e num esforço sobre-humano, comi bem uns três, quatro pedaços da dobradinha. Deve ser por isso que hoje a socialização não é meu forte, vejam só a severidade dos testes aplicados a uma criança para se obter a aprovação familiar. A gente não passa incólume por essas coisas. E olha que eu nem vomitei, engoli meio inteiro, mas engoli. Mas sabem que valeu só pra ver as caras de Draco Malfoy dos meninos?

Depois do almoço, a brincadeira vespertina no quintal, que tinha um pomar. Ocorre que o pai dos primos em questão tinha, na época, um sítio, e trouxe de lá esterco para adubar as árvores. Eu tentei por tudo convencer o pessoal a jogar uma partida amiga de banco imobiliário, mas a brincadeira da moda era Power Rangers. Só que naquele dia os meninos cismaram que não ia rolar o Megazord porque hype mesmo era Cavaleiros do Zodíaco (e se você fala Sant seiya, você é o uó, dica). Eu passei muitas horas da minha vida vendo Cavaleiros do Zodíaco na extinta Manchete e formando meu caráter com o que de pior havia: o pau-no-cu do Ikki, a bicha do Shun, o Hyoga todo trabalhado no complexo de Édipo, o poser do Shiryu e o Seiya... bom, o Seiya era errado, assim, em si mesmo. Só quem assistia para entender. Mas da história do desenho eu só me lembro dos arquétipos e de ter chorado de forma histérica no episódio em que o cavaleiro de dragão (preferido de dez entre dez meninas) ficou cego. Acabam de me informar que ele ficou cego bem umas três vezes ao longo da história e daí vocês podem concluir que se meu inconsciente preferiu camuflar essas lembranças, é porque ele sabe o que faz. Trabalhando em prol da pouca sanidade angariada por todos esses anos.

Eu até tinha os bonequinhos de todos os cavaleiros de bronze e originais, da Bandai. Daria uma grana vendê-los hoje no Mercado Livre, se eu não tivesse dilapidado cada pecinha das armaduras e rabiscado todos os rostos de canetinha hidrocor. Mas, voltando, meus primos e mais uns meninos lá da rua resolveram que iam brincar de cavaleiros e eu disse que por mim tudo bem, desde que eu pudesse ser o Ikki. Breve explicação para leigos sobre o personagem: o Ikki é irmão mais velho do Shun, que é uma bicha louca inspourtável medrosa cheia de gritinhos e pulinhos. O Shun foi escalado para treinar na Ilha da Rainha da Morte (sintam o drama) e o Ikki sacou que a passivinha de armadura cor-de-rosa não ia aguentar com o rojão e foi no lugar dele. A tal ilha só serve para infligir dor e sofrimento a quem lá treina, então Ikki voltou mau, amargo e com as trevas a corromper seu coração. Trocando em miúdos, ele era o filho da puta do grupo e OBVIAMENTE era meu preferido, exemplo de vida e essas coisa tudo. Daí meus primos me olham com cara de aham, Cláudia, senta lá e eu, julgando que eles não queriam brincar com o Ikki, inicio todo um discurso pró cavaleiro de fênix, mas eles nem me deixam fazer a defesa do rapaz e avisam o que deveria ser óbvio: eu era menina. Logo, ia ser a Saori. Explanação: Saori é a mocinha da história, reencarnação da deusa Atena - sim, é toda uma miscelânea de astrologia com mitologia plus roteiro non sequitur - e personagem feminina mais chata de que já se teve notícia na história dos desenhos japoneses. Me recusei. Bati o pé. Como assim que eu não podia ser o Ikki, mas podia ser a Saori? O ponto é que era eu contra uns oito meninos e eu nunca fui boa nesse lance de sedução do sexo oposto. Resultado: se dividiram lá entre cavaleiros e espectros, me colocaram em cima do pé de manga e ficaram bem umas duas horas fazendo lutinha pra me resgatar. Aí o escroto do meu primo que era o Seiya (Seiya = líder), resolveu que tinha ganhado, me disse pra descer e meu colocou dentro de um carrinho de mão. É. Segunda humilhação do dia. E lá vou eu, sendo levada pelo cortejo de cavaleiros vencedores, mas como desgraça pouca é bobagem, tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra. Jamais me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas: o carrinho virou e eu caí onde? ONDE, HEIN? Sim, meus caros, no monte de esterco fresco pra adubar as plantas. Que infância feliz: a pessoa come bucho, depois é oprimida pelo machismo social para, em seguida, cair na merda. Triste. Trágico. Cadê mano Sófocles para escrever uma tragédia, quando a gente precisa dele?

Pensando agora, me ocorrem duas coisas: eu tenho a memória mais absurda para acontecimentos da minha infância, mas pra saber o que me disseram cinco minutos atrás que é bom, necas. E essa história é tipo que uma metáfora para a minha vida. Licença que eu vou ali virar o Mestre do Mal e já volto. 

home, holy shit, epic fail, memórias, trash, glamour de guerra, mulherzinha

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