.leituras antigas.

May 25, 2007 22:10

"Comecei a pensar naquele antigo namorado que ainda me inspira carinho.

Lembro-me de quando nos enroscávamos. Lembro-me de dizermos que nos «ajustávamos» com um bem-estar raro, como um pássaro no ninho: à medida do corpo, da temperatura, do peso.

Quando me aproximava do sofá onde já estavas deitado, era só deixar-me cair para logo sentir aconchego. Connosco a estratégia era adivinhada, ancestral, antiga, apesar da novidade que ainda éramos um para o outro.

Nesses momentos em que procurávamos abrigo - diante do pretexto que é a televisão - e onde o sexo não era definitivamente o motivo, naquela languidez que se reveste de mantas e luzes brandas, o nosso toque era quente, sereno, balsâmico. Nessa tranquilidade silenciosa, o tacto era usado de forma muito natural, numa inata compreensão física de dois corpos diferentes, onde as mãos se tornavam confidentes honestas de desejos sem tempo para aspirações: mexíamo-nos com a espontenaidade ou o despudor com que se afaga um gato, no sossego do colo. Remexíamos a pele das nossas caras, massajávamos o cabelo um do outro, os nossos pés misturavam-se e as mãos ora se revolviam, ora vasculhavam os nossos braços e pernas. Isto passava-se de forma despreocupada e sem curiosidade, mas pela simples festa que é estar!

A nossa relação não era baseada por projectos ou hábitos de rotina,  era uma ligação de quem se entrega a um bom vinho ou como quem dança desavergonhadamente a sua música preferida.

Recordando, posso comparar a nossa história com um daqueles dias que todos temos, em que nos entregamos ao sol, à erva, ao caracol que passa. Aqueles dias da brilhante surpresa de nos esquecermos dos outros e de sorvermos o que nos aparece pela frente. Tu sabes fazer isso tão bem...

Ensinaste-me a beber e não engolir, mastigar e não devorar, morder sem destruir, apreciar e não desperdiçar.

Lembrei-me de ti quando num livro de Morris West, um dos protagonistas diz «... é melhor ser-se àrvore e crescer calmamente sob o sol, do que macaco trepando em busca de fruta». Quando me vias galgar as tais àrvores, olhavas para mim cá de baixo e cantavas com a serenidade de quem fuma o cigarro «depois do amor». Ouvindo-te, deixava-me escorregar até ao chão e emocionada com a desprotecção da tua voz, lembrava-me que os frutos que ia buscar podiam até ser saborosos, mas quando descesse já podiam estar amassados e não me saberiam tão bem. Então, tinha sido bom descer até ti, quando não, ouviria a música de longe e era uma pena.

Separámo-nos porque eu nem sempre podia desistir dos frutos e tu não tinhas apetite suficiente que chegasse para trepar aquele tronco alto..."

in Tanto que eu não te disse de Marta Gautier

lido por aí

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