Apr 19, 2015 18:45
"Por que, Kiya?", “Por que agora, Kiya?”
Eram perguntas típicas: eu sabia que ele as faria, em algum momento, e a mesma voz de séculos atrás ainda era nítida na minha lembrança. Ele sempre fora este tipo, constantemente buscando explicações até para a existência do Universo. Tão pretensioso e tão depravado!
A verdade sobre meu silêncio era tão simples e me perturbava tão profundamente! Contá-la seria alterar o curso de outras histórias interligadas a mim, contadas e recontadas, contadas e modificadas por novas evidências ou conveniências. Provavelmente sacudirá a imagem de figuras carismáticas em todo o mundo.
Gastei alguns momentos apenas para observá-lo. Naturalmente, continuava o mesmo. Parecia de alguma forma mais firme. Mais controlado, talvez. Minha criança quase santa... Eu o admirava como uma mãe a um filho, ou como um artista faria com sua obra-prima.
- Você não me parece perdido, Andrei. Imagino que tenha seguido... Ou compreendido, o meu conselho. Na verdade, me parece melhor do que nunca, minha criança.
Não esperei uma resposta. Mesmo com o bloqueio que possuíamos (ao contrário do que acontece com os humanos, e com grande parte de outros vampiros, não éramos capazes de ler a mente um do outro), eu o conhecia bem demais. Imagino que ele se sentisse ameaçado, quando confrontado com tal realidade.
Nas últimas horas, esgueirei-me no museu, e observei algumas peças históricas. Réplicas das esculturas da Décima Oitava Dinastia egípcia. Objetos com a capacidade de desenterrar lembranças da minha época... Da minha vida.
Jamais ousei olhar para trás, pois sabia muito bem o que encontraria, e temia reviver o terror, tendo a eternidade pela frente. Pergunto-me se é verdade, se efetivamente há pouca coisa capaz de destruir-me por completo agora.
Parece estar em voga, agora, isto de contar sobre a vida mortal. Compartilhei a minha raras vezes. Talvez eu possa contá-la, agora, por nenhum motivo especial.
Posso quase me imaginar posando como uma egiptóloga, veja bem. E contrariar quase todas as teorias lançadas, reformuladas e completamente transformadas até hoje. Há algumas coisas que posso atestar, contudo.
Os registros no Vale dos Reis daquela tumba destinada a mim realmente foram adulterados. E, se estou aqui, aquele corpo lá encontrado tampouco é meu. Quem imaginaria, no século XIV antes de Cristo, que a humanidade chegaria intacta até esta época?! E quem imaginaria que os estudos genéticos fossem se aprofundar tanto? Prevejo o dia que encontrarão a verdade.
- Quero contar uma história provavelmente longa, Andrei. Poderá ir quando quiser.
Andrei não mostrara reação, e interpretei o silêncio como uma concessão. Ele não fugiria.
- Nasci na Alta Mesopotâmia, quase às margens do rio Eufrates, no verão do nono ano de reinado do meu pai. Minha família era composta por figuras exóticas. A nacionalidade das uniões, se importava, importava pouco. Minha própria mãe era uma estrangeira. Ela apenas teve mais tato ao misturar-se ao local, mais carisma, e mais sorte de encontrar um reino mais receptivo. Eu não tive tal sorte.
Fui enviada ao Egito dois anos antes de ter a idade mínima para um casamento. Em termos contemporâneos, diriam que eu era pouco mais do que uma criança. Eu já fora instruída, como única filha desses queridos soberanos, em questões básicas de diplomacia e idiomas.
Deixar os meus pais e o meu lar, contudo, foi um golpe duro para a criança que eu era. Tremia de medo ao imaginar-me dispensada e desonrada, manchando o nome de minha família e a honra do meu reino distante.
Os casamentos eram transações. Em nome da diplomacia, o faraó e o rei trocavam presentes entre si. Eu era o objeto mais precioso naquela troca. Hoje isto seria chocante, não? Mas eu não me abalava. Mesmo com medo, sabia que não poderia demonstrar.
"É uma questão de sobrevivência não demonstrar medo algum", minha mãe me dizia. Quando eu a veria novamente?
Foram longos os anos em que estive quase sozinha, quase largada à minha sorte em um país estrangeiro e exagerado. Exagerado, sim, porque de repente me vi em aposentos banhados a ouro. O chão e as paredes de pedra que eu encontrava em Mitanni pareciam inconcebíveis ali.
Eu parecia uma figura de um conto distante, quando cheguei, com os mantos cobrindo-me o corpo e o rosto. Uma figura austera e sisuda, sem olhos contornados e sem a boca tingida de vermelho. O Egito também me parecia surreal. Imponente, reluzente, diferente da sobriedade do meu lar.
Andrei me escutava. Estava atento, apesar de seu silêncio prolongado. Eu sabia que ele me avaliava e pesava as novas informações, contrapondo-as com a imagem que ele sempre teve de mim.
Não que a imagem que ele fazia de mim fosse errada. Ocorre que eu também possuo um passado. Já fui humana um dia, e isto, depois de quase cinco mil anos, ainda importa.
- Ficarei aqui. - Ele respondeu-me, por fim.
Alegrei-me, porque havia muito que não via nenhum de meus filhos, e queria encontrá-los, todos. Qualquer que seja a maldição correndo em minhas veias, creio que ela esteja prestes a acabar.
kiya,
egito