1° de maio, 1986
Gostava tanto de ver aquela roda gigante enorme que estava já construída ali. Mais alguns dias e poderia, finalmente, andar nela ao lado dele. Eram só mais alguns dias e não queria esperar, queria mesmo era invadir o parque e pular naquela roda gigante amarela e reluzente!
Fugia da escola com ele por várias e várias vezes para ver a construção do parque. Não que fosse fácil fugir da escola sem que os pais fossem avisados, mesmo com tantas outras crianças estudando naquela escola em especial, mas tudo valia para poder ver o parque e fazer planos de em quais brinquedos nós iríamos primeiro. Ele era lindo e grande e faltavam apenas 5 dias para que pudesse me divertir ali com ele.
Na madrugada daquele dia todos viram a fumaça, o fogo e ouviram as explosões, algumas crianças viam as mães chorando - eu inclusive - porque o marido ainda estava na usina e nós só sabíamos que as explosões só podiam vir de lá e de mais lugar nenhum.
Os maridos voltaram, a cidade se acalmou e o parque foi aberto. A primeira coisa que fiz foi ir até a casa dele para irmos juntos até o parque. Foram tão poucas horas que pudemos passear por lá até que a mensagem chegou a todos:
“Atenção a todos os residentes de Pripyat! O conselho da cidade informa que por conta do acidente na Usina Nuclear de Pripyat as condições radioativas da cidade vem deteriorando (...) Com a idéia de manter as pessoas seguras e o mais saudáveis possível, com crianças sendo prioridade, nós temos de temporareamente evacuar os cidadãos das cidades na proximidade de Kiev Oblast. (...) Os executivos seniors (…) da cidade decidiram uma lista de funcionários que devem ficar em Pripyat para manter essas facilidades em boas condições de funcionamento. Todas as casas serão guardadas por policiais durante a evacuação. Companheiros, ao deixar suas casas, por favor, tenham a certeza de terem desligado as luzes, os equipamentos elétricos, a água e fechado as janelas.”
Ele apertava a minha mão, olhando assustado e eu só pude sorrir, puxá-lo pela mão e ir até nossas mães - ao menos nenhum dos nossos pais tinha o nome escrito naquela tal lista. Como morávamos no mesmo bloco de apartamentos eu pude embacar no ônibus com ele e ficar com ele que parecia saber que alguma coisa estava errada.
Fomos transferidos para o mesmo lugar e isso me deixava feliz, mesmo com tudo eu podia ficar do lado dele e me divertir, por mais que lugar nenhum pudesse ser mais divertido que Pripyat!
30 de julho, 1986
Ainda que longe de Pripyat os dias tem sido até que divertidos aqui. Diziam que nós voltaríamos logo, mas parece que não vão nos deixar voltar pra lá de jeito nenhum. Chegamos a ir a um parque por aqui, mas ele não pareceu tão divertido quanto o de lá, mas pude me divertir tanto com ele por lá, valeu a pena de qualquer forma.
Papai morreu logo depois do acidente, “um dos primeiros” pelo o que eu escuto falar e ele me confessou esses dias que ouviu uma conversa onde diziam que esperavam que muitos outros morressem e que ele tinha medo daquilo, que não queria que eu morresse. Ele fica realmente fofo falando isso.
Dizem que aquela coisa que deram pra todos tomarem não vai deixar que ninguém mais morra, mas algumas pessoas sussurram pelos cantos que não acreditam muito no que o governo diz, todos parecem ter medo do que ainda pode acontecer com a gente. Parece que ficam todos esperando a notícia do próximo que vai morrer. Espero que logo isso tudo passe.
30 de julho, 1990
Nós nunca pudemos voltar à Pripyat, nem mesmo para pegar o que havíamos deixado por lá, diziam que o risco era alto demais e nem mesmo a visitação é permitida, o que é uma pena. Vivi a vida toda em Pripyat e queria poder terminá-la lá, mas parece que não vai ser possível.
Desde o acidente tenho notado que fico doente com mais facilidade e, sempre que me sinto mal ele fica do meu lado, com a mesma expressão de sempre! Eu só posso rir quando ele fica me olhando com aqueles olhos grandes, meio assustado. É fofo!
O mundo tem andado estranho e difícil de acompanhar desde o acidente, é estranho ver que tudo parece correr contra tudo o que imaginávamos e aprendíamos na escola até, não sei, ano passado.
12 de março, 1991
Ultimamente tenho passado mais tempo no hospital - com ele segurando a minha mão com mais força do que deveria - do que em casa com a minha mãe. Ele parece saber que alguma coisa errada vai acontecer e eu sei que vai, muitas outras crianças morreram depois de períodos assim, algumas rápido, outras nem tanto.
A última coisa que eu gostaria de deixar escrito aqui é pra ele, pra que ele saiba o quanto ele me fez acreditar que a vida vale a pena, mesmo com todas essas idas e vindas ao hospital, mesmo com todas as doenças que todo mundo sabe de onde vem, mas ninguém quer afirmar em voz alta.
É, você mesmo! Obrigado por estar sempre comigo! Você sempre foi a minha estrelinha.
Eu queria ser imortal para ficar do seu lado como você ficou do meu, mas agora eu vou me transformar na sua estrelinha. Para sempre.