Feb 04, 2009 02:20
Acordou ainda tonto. Tudo parecia rarefeito, superexposto a iluminação, descalibrado. O rosto dele estava manchado, era tudo muito estranho. Uma melodia de piano tocava ao fundo, vindo de uma vitrola velha, um som radiofônico, cheio de sujeiras e imperfeições. A janela estava escancarada, o sol urrava em luzes amareladas, invadindo a tudo, irritando. A cabeça doía. Ele ergueu-se, arrastou-se pelo quarto, tentou segurar-se, escorregou, tentou segurar-se novamente, caiu sobre papéis. Viu muitas telas piscantes, ligadas a muitos fios, ligadas a muitas pessoas. Viu sorrirem pra ele. Viu os olhos verdes que observavam da porta. Inquisidores.
***
___Então não lembra de nada.
___...
Ela mordeu o lápis impaciente. Ainda esfregava o pulso arrouxeado, forçado pelo segurança que viera com ela na van, removendo-lhe dolorosamente a esperança de usar o gravador que guardara entre os seios num compartimento secreto do sutiã. Foi impulsiva, se deu mal.
___Olha, eu não gosto de perder meu tempo.
Ele ergueu-se. Foi até a sala, dando-lhe as costas, devagar. Sentou-se ao piano. Acariciou as teclas passando os dedos pelas extremidades,lentamente.
Ela foi atrás, enfesada. Queria dar-lhe uns tabefes. Os três primeiros acordes, decididos, fizeram-na saber qual era a música, na mesma hora.
***
Ela estava linda, em seu vestidinho azul, e em sua meninice de dez anos. Era um sorriso maior que o mundo, e uns cachinhos de boneca alemã. Não parava quieta no colo da mãe. Queria dançar a Moonlight Sonata balançando-se, correndo e fazendo movimentos de princesas em reinados, como fazia em casa. Mas o fato de aquele ser um concerto do pai, reforçado pela cara de "não faça isso ou..." da mãe eram suficientes para manter sua bunda sobre as pernas da mãe. Os caracóis rodopiavam no ar enquanto os olhinhos castanhos acoompanhavam as mãos sobre as teclas. Foi assim que ela que notou as lágrimas nos olhos do pai, e a forma como crispavam-se suas mão, tremendo lentamente. Foi ela que notou que ele sentia dor, ee que ele se esforçava de uma forma estranha. Ela que sabia decor os movimentos daqueles dedos. E foi ela que gritou alto quando ele finalizou a canção, a lua imensa iluminando a negrisse dos cabelos e do piano, e o corpo que caia estrondoso sobre as teclas.
***
Ficou imóvel ao lado do piano. Não demonstrou qualquer emoção, senão uma petulante expressão de desprezo. Mas dentro de si, em si apertava-se a garganta e forçavam os olhos a lacrimejarem. Ao voltar-se violenta foi-se ao chão um vaso. Ela olhou-o. Ele parecia em transe. Ela abaixou e começou a juntar os cacos. a cabeça forçava pra baixo, pensamentos e angústia. Levou os cacos ao lixeiro e viu que havia uma xícara de café preto fumegando. Pegou.
___Não.
Ela voltou. Ele continuava tocando.
___Não o que?
___Não lembro.
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