Faz quase dois anos que ela se foi. Hoje é uma sexta-feira, véspera do aniversário da dona Goi. Eu tenho me sentido estranho a semana inteira, e hoje foi um dia que eu precisei me deitar várias vezes de olhos fechados, encolhido. David veio me ver várias vezes e eu repeti todas as vezes que estava bem. Mas a verdade é que eu não estava. Fisicamente talvez, mas minha mente era um grande branco. Não, branco não,cinza. Um cinza monótono meio quente, meio frio, meio nada. Eu já tinha planejado que no aniversário dela ia comer algo que ela gostava de fazer, talvez uns espetinhos, um yakisoba. Eu quase podia ver ela pulando de felicidade com o anúncio de um yakisoba meu. Mas o meu corpo não tava ajudando, eu não sabia se ia conseguir cozinhar no dia seguinte.
David apareceu na porta novamente e pediu pra ficar comigo. Me abraçou, ficou em silêncio me dando meu silêncio, mas se mostrando presente. Eu tinha vontade de chorar mas as lágrimas não saiam, eu fui aos poucos sendo invadido por uma tristeza crescente, uma sensação ruim e amedrontadora. Enfim, fui convencido pelo David a sair pra comer, pra pegar um ar. Fomos até uma hamburgueria nova pra conhecer o ambiente, lugar pequenino. Eu estava um pouco avoado ainda. Vamos de porção? Ah, pode ser, e uns chops? Ah legal, vamos de chope e porção e depois os sandubas. ok! Ah legal, a porção com costela desfiada e cream cheese? nossa, pode ser, claro! Obrigado!
Eu dei a primeira garfada de fritas e senti o gosto da costela. O quentinho da comida se transportou pela boca, o cheiro de defumado, o sabor daquela carne era muito, muito bom. Era do jeitinho que a minha mãe gostava. Ela teria adorado.
Minha mãe se enfiou saltitando pela porta do escritório, o vestidinho leve levantando as pontinhas. Ela para do meu lado e fica me olhando. Começa a falar, como sempre, sem lembrar que eu to de fone, que eu não ouço ela. Eu abaixo o fone mas continuo olhando pra tela compenetrado.
- Oi, agora pode falar.
- Filho eu tava pensando. Vou pedir uma costela pra gente almoçar.
- Não posso ver isso agora mãe, tenho muita coisa pra fazer.
- Mas você paga?
- Pago sim, claro. Só não posso ver isso agora.
- Tá bom.
Ela sai saltitando. logo depois chegam chamando ali na frente. Ela berra lá de dentro:
- Filho você pega a costela?
Eu reviro os olhos e entro na cozinha irritado.
- Mãe eu tô ocupado poxa!
- Mas você tem que pagar!
- Ah, é verdade. Tá eu vou.
Eu saio pela porta da cozinha e atravesso o portão lateral. O dono do lugar, filho de uma amiga da minha mãe, aparece no portão sorrindo. Ele pergunta pela Dona Glória, e eu digo que ela tá terminando o almoço. Que eu ia pagar e ele me entrega a costela enrolada em papel especial pra carne. Ela é enorme! Ele manda um abraço pra dona Glória e eu agradeço.
- Ele te mandou um abraço.
- Quem?
- O moço que veio entregar.
- O filho da Glorinha?
- Isso. Sabia que conhecia ele de algum lugar.
- Deixa eu ver, deixa eu ver!
Ela pega o pacote da minha mão afobada, chego a dar uma risada baixinha. Ela coloca sobre uma travessa e abre o papel todo revelando uma crosta crocante cortada em pedaços e o cheiro bom invade a cozinha. Ela pega uma pontinha e enfia na boca lambendo os dedos. Logo depois fecha os olhos e se encolhe toda.
- Hmmmmmmm mas que essa costela tá é di-vi-na!
Ela dá pulinhos e faz um gesto com um braço como de vitória. Sai andando ao redor da mesa com pulinhos, revirando os olhos.
- Me chama quando tiver pronto o resto mãe?
- Tá pronto já! Chama o David, anda!
Eu sabia que não tava pronto ainda. Ela queria finalizar tudo batendo um papinho com a gente enquanto isso a espertinha. Fui chamar o David. Ele já foi dizendo que tava ocupado e eu ia ter que chamar ele de novo daqui a uns minutos.
- Como pode uma mulher assim viciada em carne ein dona Glória?
- Meu filho. Eu não passei necessidade na vida a toa. Agora eu vou me acabar comendo as coisas gostosas que eu não tive. Ro, tu não tem ideia de como isso tá bom.
- Mas precisa lamber os beiço vendo um boi no pasto e imaginando ele no espeto?
- Ai o cupim né? Foi só aquela vez, para de pegar no meu pé.
- Você viu o boi no pasto e ficou salivando. O boi pastando mãe! hahahaha
- Ai nem fala que dá água na boca de lembrar. Era um cupinzão, ele nem precisa daquilo tudo!
- Tá bom, posso botar o arroz na mesa?
- Pode. Coloca os talheres pra mim?
Enquanto eu coloco os talheres o David aparece sem eu ter que chamar. Ele senta na mesa, já coloca a coca cola perto de si. Eu me sirvo de uma porção generosa de maionese de batata doce. Ela corta o pedaço da costela dela e começa a comer. Ela mal se segura na cadeira de satisfação com aquela carne assada, balançando os pezinhos que não alcançam o chão na cadeira.
Tenho que admitir que a carne era deliciosa, que desmanchava na boca de tão macia. Mas eu não senti um quinto da empolgação da Dona Glória, agarrada em seus ossinhos, o pezinho sobre a ripa da cadeira que unia as pernas, os chinelos de dedo caídos logo abaixo. O almoço estava do jeito que ela gostava: Uma carne gostosa,salada de maionese de batata, farofa e arroz temperado. E um cafezinho no final acompanhado de um cigarrinho. Sobrou muita costela, que ela logo embrulhou e levou pra geladeira.
- Vou fazer uma roupa velha deliciosa, e vou chamar o menino pra experimentar.
- Que menino?
- O filho da Glorinha. Ele vai se empapuçar.
- Hahahahaha, tá bom mãe. Mas eu vou querer também. Quer que eu lave a louça?
- Olha eu queria. Mas tu não lava direito então nem adianta. Deixa aí que eu lavo e depois vou dormir um soninho.
A essa altura, o David já tinha voltado pro escritório e eu costumava ficar lá acompanhando ela apesar de me dispersar em vários momentos com as histórias longas, cheias de aventuras, reviravoltas e piadocas bem questionáveis. Minha mãe era boa de contar histórias e de cozinhar, e ela tinha orgulho de eu ter puxado tudo isso dela.
Às vezes quando eu lembro dela, sinto a textura da sua pele, tão fininha e fresquinha embaixo dos meus dedos. Eu sinto o perfume dela, dos cabelos dela. O cheirinho tão específico que eu acho que senti ele toda uma vida, quando ela me dava uns cheirinhos no pescoço quando criança, ou quando eu dava um cheiro em seu pescoço depois de velho e ameaçava encher ela de mordidas, ou de cócegas até ela implorar pra parar, senão ia mijar na calça. Às vezes parece que eu vou chegar no quarto dela e ela vai estar lá rezando pra nossa senhora aparecida no altar dela, e eu vou sair sem interromper, sem atrapalhar como fiz várias vezes. Mas a minha vontade era de abraçar ela muito forte, de fazer carinho no seu cabelo e dizer pra ela que ela sempre vai estar comigo. Aí eu me pergunto porque continuar. Aí eu lembro que ela ia querer que eu continuasse. Aí eu continuo.
Tínhamos acabado de comer e nada era tão bom quanto aquela costela desfiada que cobria um prato de batata fritas numa lanchonete aleatória. Eu estava extasiado.
- A mãe teria gostado dessa costela ein David.
- Talvez não porque ela não gostava de coisas desfiadas.
- Verdade. Mas acho que ela só ia fazer tipinho, depois ia comer e sair dando pulinho.
- Hahahah realmente, sairia dando pulinho.
Quando eu me viro, pronto pra ir pagar vejo que o dono chegou. Ele está conversando com pessoas em outra mesa. Ele não me é estranho. Eu sei quem ele é. Eu peço licença pro David e vou falar com ele.
- Tu que era o dono daquele lugar que vendia costela do lado do mercado?
- Ele ainda abre, mas agora temos aqui também. Gostou?
Eu parei um segundo pra tomar ar. Ele era o cara que veio naquela manhã a vários anos atrás entregar a costela preferida da minha mãe. Ela já era até amiga da mulher dele de tanto que ligava pedindo e se perdia em altos papos. Contei a ela que ela tinha falecido O cara chamou a mulher pra comentar sobre isso, disse que tinha um casal ali e que um deles era o filho da Dona Glória.
- Eu lembro da Dona Glória porque ela tem o nome da minha mãe. E porque ela vivia pedindo a nossa costela.
- Era a costela preferida dela, de todas que existem.
Saímos pela rua, respirando o ar fresco da noite e conversando sobre as falas e manias da minha mãe, dos olhinhos brilhando com qualquer possibilidade de um churrasquinho de fim de semana. De como minha mãe soube, através da comida, passar um amor tão grande que não cabia dentro dela, mas que ficava crocante numa milanesa, defumado num espetinho ou geladinho num pudim delicioso, tudo finalizado com um golinho de café e uma boa história pra arrematar. Chegamos em casa e eu me sentia mais leve pela experiência, e pelas lembranças, e muito contente por ter comido algo que ela teria adorado, como eu planejava, e dar o braço a torcer: Aquela costela era exatamente como ela dizia: “de se empapuçar”.