recorrente

Oct 01, 2015 23:04

Estevão era daqueles que se escondem embaixo do guarda-chuva para não ter que encarar o olhar cruel das pessoas a sua volta. Usa sempre abaixado, cobrindo seus olhos castanhos curiosos.

Na cidade em que mora, chove o tempo todo o que torna comum a convivência do garoto com calças e sapatos que andam de lá pra cá. Eles estão apressados, ou parados, andando rápido ou muito lentamente, arrastando os pés ou correndo nos calcanhares.
Como o caminho até o trabalho é longo, ele acaba se divertindo com o comportamento daquelas pernas e pés, e com a combinação de roupas da parte inferior que seus donos decidem pra eles.
Olha só, - fala pra si mesmo - usando calça de moletom com chinelo de dedo e meia, deve ter acordado agora. E o moço de bota de chuva e bermuda? Deve ser velhinho porque arrasta os pés e fica dando tossidinhas. Deve fumar também. E essa senhora com um sapato com furinho bem no dedinho? Péssima idéia usar uma meia branca né, hehehe.
Ele então fica dando risinhos comedidos sozinho, pedindo pra si mesmo se controlar e parar de falar mal dos outros (mas é tão divertido).

Naquele dia, a chuva estava mais grossa que de costume, as ruas estavam bastante cheias de água, com muitas áreas elameadas e cachorrinhos de pêlo molhado correndo por aí. Vários pés iam de um lado pro outro, fugindo da chuva enquanto muitos guarda-chuvas disputavam espaço com o dele. Pés de calçados fechados se divertindo com o chapinhar  da lama  voando pelos ares, mais felizes talvez que os cachorros.

Foi ai que viu aquele sapato, lustroso e muito escuro, tamanho 44, grandão, imponente. A calça socia era curta, deixando a mostra uns tornozelos fininhos que vestiam uma meia azul escura com uma tirinha fina cheia de pequenas ancorazinhas. A forma como as pernas se posicionavam, com um pé levemente voltado pra fora, e outro parado bem retinho tinha um que de sedutor, parecia pertencer a um cara muito seguro e ao mesmo tempo irônico, simpático e decidido. Assim que ele se aproximou, deu pra sentir um perfume bom, algo amadeirado, sutil mas com toques apimentados, um cheiro bom, fraco mas presente.
Estevão se encolheu ainda mais, segurando com força o braço do amigo que o protegia da chuva. Apertou o botãozinho no cabo várias vezes, e dava de ouvir o barulhinho simpático da mola, tentando acalmar o seu dono.  Abaixo do tecido do guardachuva, duas bochechas ficavam muito vermelhas, caracterísctica que ele achava hedionda por denunciar seu nervosismo aparente.

O ônibus chegava. Enfiou a mão nos bolsos pra pegar o dinheiro da passagem, e as moedas voaram pelos ares, zunindo felizes e brilhantes com a premissa de um banho geladinho nas poças que se enchiam de ondulações. Ficou ainda mais nervoso ao ver aquelas pernas se dobrarem levemente, e duas mãos grandonas se moverem para dentro das poças pra pegar as moedas fujonas. O garoto fechou os olhos apertando-os com força. O homem tocou-lhe o braço, oferecendo de volta o dinheiro perdido.

Num ímpeto, abaixa o guarda chuva e cheio de coragem, fita o homem nos olhos. Esses, não existem. Nem olhos, nem nariz, nem mesmo uma boca. Apenas um borrão onde um sorriso era visto com dificuldade.
__Tome cuidado -  ele fala e se vira pra subir no ônibus. Estevão fica lii, com a chuva caindo no rosto, sem saber o que fazer. Sem saber o que pensar. As gotas se evaporando no calor daquelas bochechas rosadas.

Sabe o que são sonhos recorrentes? Aqueles que se repetem ou que continuam, como numa história em capítulos. Os sonhos recorrentes de Estevão são sempre iguais, nesse momento perdido no tempo que aconteceu a um tempão já. Se arrepende de não ter olhado pra o dono dos sapatos, de não ter aberto os olhos, de não ter visto se se eram lisos aqueles cabelos, se era negra aquela pele, se eram puxados aqueles olhos. Sempre sobra esse pedaço, como num filme velho que mofou e não tem restauração.

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