Natal Está em todo o lado e só atrapalha

Dec 23, 2008 00:31

Paz, família, harmonia, comida, prendas: o Natal é uma maravilha. Mas
não para toda a gente. Há quem não suporte as iluminações e as músicas,
não mande postais e deteste comprar prendas.
Por João Bonifácio



Pelo menos para uma percentagem de gente nem sempre compreendida, o Natal é uma chatice que dura semanas, que implica prendas compradas à pressa e oferecidas por obrigação, cartões enviados a pessoas de quem mal nos recordamos... Para uma percentagem ainda considerável de gente o Natal é o centro de conversas de que não querem fazer parte mas são obrigados a - porque o Natal está em todo o sítio, a toda a hora. E só atrapalha.
Há muito que o Natal não serve para comemorar o nascimento de Jesus Cristo, mesmo que ainda haja quem se reúna numa igreja à meia-noite de 24 para 25. É uma desculpa para reunir a família, dizem uns. É uma época em que premiamos quem amamos, dizem outros. É apenas consumismo, gritam terceiros. Mas, dizem quase todos, é a época da harmonia. Tem de ser. Obrigatoriamente. Mas será mesmo?
"Odeio o Natal porque é uma imposição e porque é a época da intolerância: no Carnaval não se leva nada a mal, no Natal leva-se tudo a mal. Leva-se a mal se não comes as filhós porque as fizeram com todo o amor e carinho, leva-se a mal se não queres dar prendas, levam a mal se não queres estar com toda a gente. Levam tudo a mal."
A citação é de Raquel Porto, de 38 anos, designer, nascida no Porto e a viver em Lisboa. Não gosta muito do Natal. O que a irrita na quadra não é apenas "o ser obrigada a participar" na festa de harmonia, "o ter de estar muito feliz" mesmo que não esteja. Não, o que a irrita "é mesmo a intolerância".
Raquel usa a palavra "intolerância" várias vezes. Ela não é a única a não gostar do Natal e não é a única a achar que nesta época os pró-Natal são intolerantes com os anti-Natal. Por que razão é que há pessoas que não gostam do Natal? E especificamente do que é que não gostam em tão bela festa? Maria, de 40 anos, revisora de textos, igualmente nortenha a viver em Lisboa, acha que há uma "imposição artificial de felicidade", o que "é mais violento do que parece: a nossa felicidade tem de estar à altura do que os outros esperam".
"Felicidade imposta"
Esta "felicidade imposta" é a primeira fonte de irritação para os não-natalícios - e a imposição "não parte só da família" de cada um, está "em toda a gente". Raquel: "Parece que tens de estar sempre a falar disso: 'Já compraste as prendas todas?' 'Não, não comprei as prendas todas'." Alexandre Borges, guionista, de 28 anos, concorda: "Há uma atmosfera irritante, em que só se conversa sobre o Natal."
Daqui se percebe que não é apenas a noite de 24 para 25 que importuna os detractores do Natal, antes (citando Borges) "o que torna o Natal desgastante é o excesso de celebração de uma coisa de que já se estava à espera: 'Ah, é Natal!' Mas não era para ser? O Natal devia ser só nos anos bissextos, para dar mais vontade".
À partida esperava-se que o grande problema do Natal fosse a família. Mas, por exemplo, para Alexandre e para João, de 55 anos, professor de Música em Lisboa, o problema do Natal não é sequer a família, porque (citando João) "aturar a família nesse dia é o mesmo que aturá-la nos outros dias".
João: "De um modo geral não gosto destas festas com data marcada, Carnaval, Páscoa, anos, etc.". Nisso está no mesmo barco que Alexandre, Maria e Raquel, já que todos reclamam do mesmo. É, diz João, mais uma "festa por procuração", só que com "a ganga católica adicionada", com todo aquele "lado lamechas, cristão e vamos-todos-dar-as-mãos nojentamente sentimental da coisa, que irrita. Já para não falar do lado patético de estar a celebrar o nascimento de alguém que não existiu."
Resumindo: o problema nem é aquela noite em si, "a envolvente é que é dramática".
Mas o que é essa envolvente? É (Maria) "a forma como se insuflam bons sentimentos à força a toda a hora". Alexandre dá um simples exemplo de algo que rima com a irritação de Maria: "A maior irritação de todas são as canções que as estações de TV fazem com as estrelas todas - é assustador, deve ser a secretária que escreve aquilo." João assinala pequenas mudanças no dia-a-dia que formam "a envolvente": "O Natal é invasivo: as iluminações, o trânsito, o Jingle Bells no supermercado".
As iluminações são a pedra-de-toque da irritação dos não-natalícios. Como diz Alexandre, "ainda não começou a chover e já há iluminações de Natal - o Natal começa sempre muito antes da hora". E, acrescenta Maria, "se se diz que não se liga às iluminações de Natal as pessoas olham-nos como se estivéssemos a armar-nos em esquisitos". Raquel conta que só pôs iluminações em casa "uma ou duas vezes" em que o Natal foi passado lá. "Não era o típico ornamento de Natal, era só uma bola com luzinhas. Fazia o lugar de árvore de Natal." Maria, que não tem filhos e passa o Natal no Norte com os dois irmãos e a mãe, nunca pôs. João nunca fez uma árvore de Natal - é a mulher que a faz por ele. Também é ela que manda postais e prendas aos amigos. João tem filhas, por isso foi sempre obrigado a pactuar com o fenómeno natalício - mas fez-lhes sempre ver que só está ali porque é "obrigado". "Tenho uma coisa um bocado misantrópica de ir para o computador ou ir para o sofá ler, tentando que a minha má onda não extravase para os outros."
O trânsito é outros dos problemas. "Fica caótico", lembra Alexandre, que não compreende a razão da lentidão do trânsito no Natal: "Se calhar as pessoas param os carros para trocar impressões sobre as prendas. Param, abrem o vidro e falam de um carro para o outro: 'Comprei um perfume para a minha mãe, o que é que achas?'" Raquel tem a impressão de que "as pessoas enfiam-se nos carros e vão ver a árvore [de Natal gigante] e o trânsito fica um caos".
Uma coisa que todos estranham numa festa que, na prática, dura uma noite é a duração. Raquel: "Durante três semanas não consegues fazer nada em termos de trabalho normal: ninguém toma decisões nesta altura. No meu caso, as gráficas estão apinhadas de postais de Natal e não consigo fazer nada. Depois há quem vá de férias ou então já estão com a cabeça noutro sítio. Se falta papel há uma fila enorme na papelaria. Não podes ir ao teu café de todos os dias porque as mesas estão ocupadas com vendas de bolo-rei".
Neste mês de Dezembro que o Natal ocupa por inteiro, a maior parte das pessoas vai fazendo as compras das prendas. Mas não estas pessoas. Quem não gosta do Natal adia o mais que pode as prendas. Compra prendas, claro - como diz João: "Era excomungado se não o fizesse". Apenas o fazem o mais tarde que podem. Porque vai-se às compras e, diz Alexandre, "as pessoas andam a correr, atropelam-te com o carrinho, tentam ultrapassar-te para chegarem primeiro à fila do balcão". Porque "cada vez que penso na fila da Fnac fico tão deprimida que adio as compras para o dia seguinte" (Maria). Ou porque, por vezes, como acontece com Raquel quando comemora o Natal em casa, reunindo a família do namorado com a sua mãe, "em vez de perder tempo a comprar as prendas que quero para as pessoas que gosto tenho de andar a gerir as prendas dos outros: a minha mãe que quer saber o que oferecer ao pai do meu namorado e vice-versa".
Curiosamente, o que estes descrentes no espírito de Natal mais parecem gostar é das prendas. Alexandre: "O consumismo não me faz diferença alguma, tudo o é consumismo". Em compensação, a comida não parece interessar-lhes. Raquel: "Não ligo nenhuma a doces de Natal, não gosto de bolo-rei. Quero lá saber se é tradição, eu não gosto. Por que raio tenho de comprar bolo-rei?"
O problema de Maria com a comida é outro: "Em miúda havia sempre acusações entre os meus irmãos sobre quem tinha ajudado menos os pais na cozinha." Ainda hoje Maria, que nunca cozinhou o que quer que fosse, quando vai para o Norte ter com os irmãos tem a impressão "de que as mulheres deles disputam um pouco a ver quem cozinha mais ou melhor, como se disputassem quem faz o maior esforço para que o Natal corra bem". O que, "além de ser hipócrita", "inevitavelmente" faz com que o Natal "corra mal". Raquel assinala também o problema de se tentar manter tradições mesmo quando já não faz sentido. Diz que quando passava o Natal com a mãe no Porto, "mesmo sendo só nós duas, ela cozinhava como se a família ainda estivesse toda junta".
Dia deprimente
Acabada a noite de Natal vem o dia de Natal, que, diz João, é "o mais deprimente de tudo: sai-se à rua e não há nada. Não dá para tomar café, comprar tabaco, nada. Parece que houve um cataclismo muito grande". E quando o dia não é deprimente, é uma correria, como faz ver Raquel: "Acaba por ser uma falta de respeito porque é suposto estares com todos, mas como não se dão todos bem andas a correr de um lado para outro."
Tudo isto são clássicos a que Maria chama "a neurose de Natal". A "neurose de Natal", diz ela, não está nas pessoas que detestam o Natal. Está "naquele fenómeno estranho" de "as pessoas se darem a enormes trabalhos supostamente para agradarem ao outro, mesmo que o outro preferisse que elas não fizessem nada. E no fim cobram o que fizeram"... Raquel: "É tudo isso a que és obrigado para deixar os outros felizes que se torna bastante impositivo. E o Natal deixa de ser um prazer."
Como é que estas pessoas são vistas pelos outros?
Raquel: "Dou por mim a ser a chata que está sempre a contrariar tudo. Toda a gente está sempre com o discurso superfeliz e a partilhar e prendas e eu sou a chata."
Maria: "Mesmo no trabalho, se não conversamos sobre as prendas e a família, é como se ofendêssemos as pessoas. Como se puséssemos em causa a crença das pessoas na harmonia da família. Mas a família tem um ano inteiro para se dar bem, não precisa do Natal para nada."
João: "As pessoas já me conhecem demasiado bem para virem com a conversa do Natal."
Ainda assim, e por mais ridículo que pareça, o assunto é sério: João e Maria pediram para não incluirmos o nome de família porque não querem ser identificados e nem ter de levar com os julgamentos dos outros. Aparentemente é mais fácil ter opiniões políticas subversivas que uma opinião sobre o Natal divergente da dos amigos e conhecidos...

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