É naquele local em que a enterrámos que por vezes regresso para a visitar.
A primeira memória que me salta, sem aviso, aos olhos, aos sentidos, aos pêlos dos braços que se levantam de imediato, ao arrepio frio na espinha que me percorre da ponta do dedo maior do pé esquerdo à base da nuca, corpo acima, é aquela em que te vi sorrir, pela primeira vez.
Sentamo-nos no Adamastor, a contemplar o rio que, a esta hora da manhã ainda exibe aquela névoa, aquele novoeiro matinal que espera que passe o primeiro cacilheiro e o rompa mais uma vez, para anunciar a chegada do dia.
Os olhos estão carregados de uma noite na qual nos encontrámos já no fim, um pouco antes de voltar para casa. Não foram necessárias palavras nem tão pouco expressões nem sorrisos para nos dirigirmos para ali, quase instintivamente, como não o são agora que observamos as luzes acenderem-se uma após outra nas casas que se vêm dali abaixo, com os seus habitantes, moradores, parasitas a levantarem-se para mais uma semana de vida, de rotina, de trabalho que deverá ser igual a tantas outras, à anterior, à próxima nas suas vidas.
Deixamos as horas escorrer através de nós, sem lhe oferecermos oposição, entrave. Envelhecemos juntos, ali, sem sequer necessitar de olhar um para o outro.
As pernas, pouco inocentes, enrolam-se umas nas outras, misturam-se ao ponto de deixarmos de distinguir qual pertence a quem, se é que não pertencem a ambos ou a nenhum de nós. As mãos, ainda menos inocentes, tocam as pernas e o corpo, ao de leve, arrepiando à sua passagem, levantando camisas e roupas e sorrateiramente, ou não tão subtilmente assim, escondendo-se por debaixo de trapos, tecidos, peles, corpos, vidas. Os olhos tocam-se então pela primeira vez, sem que qualquer necessidade se sinta de os desviar de vergonha um pelo outro ou pelo que possamos ver ao espreitar para dentro da alma. E os sorrisos lentamente, tal como a manhã que demora a acordar, abrem-se, como uma flor à chegada do sol, como o sol à partida da lua, como a lua ao regressar ao fim da tarde, quando ainda é de dia. E os sorrisos assim permanecem abertos, sem que necessidade se sinta de os esconder por detrás de máscaras que há muito cairam, com a noite, que há muito se perderam por detrás de balcões húmidos e pegajosos do alcool que a noite passada foi sendo derrubado, shot após shot, copo após copo, garrafa após garrafa.
E os sorrisos assim ficam, muito depois de partires, escondidos ali, à minha espera, para voltar sempre que regresso para te ver, para voltar sempre que regresso para te ver...
(texto escrito pelo
ne0n)