1.
SONETO JÁ ANTIGO
Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
embora não o sintas, que tu escondes
a grande dor da minha morte. Irás de
Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
que eu nada que tu digas acredito),
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes,
Embora não o saibas, que morri...
mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará... Depois vai dar
a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!
- Álvaro de Campos
2.
NA FALÉSIA
Maria,
Quando eu morrer, não te vás despedir de mim à Lapinha. Não mereço calça, culote, paletó, almofadinha. E detesto cordões de ouro... Vai a Charing Cross e compra um bilhete para Folkestone. Tu sabes - uma daquelas cidadezinhas debruçadas sobre a Mancha sem Quixote, quando pára de chover os ingleses correm à praia e aos bicudos seixos, coitados!, nunca namoraram em areia fina, vento cortante e Atlântico gelado. (Eu sei, eu sei, a culpa era minha, detestava o Algarve...). Vai à falésia, mas não procures França ao longe - se a nostalgia te assaltar ouve a canção de Oldfield, a música leva-nos everywhere, como aí se diz -, vê onde pões os pés. Não, não, nada disso!, é terra firme em país que reinou sobre os águas, estás segura, querida. Quero que sigas as pegadas na relva, that’s all. Mais tarde ou mais cedo verás um coreto que abriga uma banda, hélas!, sem Sargento Pimenta. Ao seu redor cadeiras de lona e mantas para joelhos e não só, algumas sobem a peitos friorentos e dados a caprichos da tosse, a maior parte deles com vidas longas e futuros anémicos, mais uma razão para mergulharem nos seus acordes favoritos e patrióticos, “rule Britannia, Britannia rule the way...”. Há um estrangeiro entre eles. Estrangeiro e não estranho, sente-se confortável na loira Albion, mas nasceu a Sul e a ele voltará, tristesse oblige.
Sou eu - adolescente; inseguro; sozinho; só. Em resumo - antes de ti, primeiro; da tua saudade, mais tarde. Dá-lhe um beijo. E eu dir-me-ei, aliviado, ao espelho - R.I.P. (Vivo, não foi possível sem ti...)
- Júlio Machado Vaz (no blog MURCON:
murcon.blogspot.pt)
3.
Se algum de vós for ao meu velório, diga aos estranhos que por lá estiverem a interromper-me o descanso profundo com improváveis anedotas a meu respeito, que, últimas vontades, só tive a de ser enterrado ao som do Largo de Handel.
A minha derradeira esperança é a de que quando se começar a ouvir a prolongada sombra, os anjos do céu, nús, loiros e roliços, assomem por entre as núvens e, divertidos e apiedados de me verem tão desamparado, me levem para os magníficos salões desertos onde brincam à música por toda a eternidade.
Antes ainda de abandonar o cemitério, esse de vós que for ainda mais piedoso do que os anjos e não me deixe entregue à companhia de estranhos de óculos escuros, procure a sombra de um plátano e sente-se. Se sentir que ombra mai fù de vegetabile cara ed amabile soave più, esqueça depressa o meu rosto e os meus olhos. Serei feliz.
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Ao ler um dia destes o texto de Júlio Machado Vaz no seu blog Murcon, com o título Na falésia, lembrei-me inevitavelmente do Soneto Já Antigo, de Álvaro de Campos, que o texto de Machado Vaz me parece citar directamente. Ou talvez seja somente um caso de ‘under influence’. Ou mesmo apenas uma coincidência. Mas é um texto belíssimo, seja como for.
Lembrei-me igualmente de um texto que escrevi aqui no innersmile há precisamente 11 anos, em outubro de 2002, que não foi escrito sob influência do soneto de Campos, mas em homenagem ao largo de Haendel Ombra Mai Fu, explicitamente citado, e interpretado pelo contra-tenor David Daniels. Esse meu texto teve originalmente duas versões, uma em texto corrido e outra em poema. Tornei a publicá-lo em maio de 2005, quando fui, pela primeira vez, à Casa da Música assisitr a um concerto de Andreas Scholl que, a abrir o encore, cantou a mesma composição.
Fui ler esse meu texto antigo. Achei que podia juntá-lo aos outros dois, ainda que seja mais lateral ao tema, mas re-escrevi-o ligeiramente, e por isso aqui o ponho pela terceira vez.