O Armistead Maupin escreveu 6 livros da série Tales of The City, uma crónica de costumes passada em São Francisco da California, e que segue as vivências e as andanças de um grupo de personagens muito liberais, entre finais dos anos 70 e inícios dos anos 90. Além desses, escreveu mais dois, que não têm nada a ver com a série, e que nunca atingiram o mesmo paradigma de narrativa, humor e contundência. Em 2007 Maupin regressou a Tales of The City com um romance que não fazia parte da série, mas que recuperava os seus personagens, ou parte deles, regresso esse agora confirmado com Mary Ann in Autumn. Não é inocente a escolha do nome dos personagens para títulos dos romances: Maupin está nitidamente a chamar os leitores que fizeram de Tales of The City uma das séries narrativas mais populares da literatura contemporânea norte-americana (como atestam três séries de TV feitas a partir de livros, e um musical feito em parceria com os músicos dos Scissor Sisters), popularidade que ultrapassou a comunidade gay e lésbica, apesar de esta ser, inegavelmente, o seu principal público alvo e sobretudo quem transformou os livros de Maupin num fenómeno de vendas.
Mas Michael Tolliver Lives era um regresso um pouco disfarçado à série Tales of The City, com diferenças estilísticas significativas e um tom tão diferente que fez muitos leitores rejeitarem o romance, um pouco naquela onda muito purista de ser mais papista do que o papa. Suponho que este Mary Ann in Autumn deixe esse pessoal mais satisfeito, pois é um verdadeiro regresso, ‘in full regalia’, ao universo das Tales: o humor, as peripércias, a dinâmica entre as personagens, os envios e as referências cruzadas à vida real e ao nosso mundo contemporâneo, mas sobretudos duas coisas.
Primeiro um domínio feroz da narrativa e da linguagem. Um texto fluído e fluente que nos transporta de maneira imaculada através das páginas do romance. E depois, e talvez o mais notável em Maupin, uma capacidade imensa de criação de personagens, de lhes dar o sopro da alma humana (e não só, já que a alma canina está também muito presente neste livro), uma atenção ao detalhe, às grandezas e às pequenas misérias, às contradições, que tornam as personagens muto vivas e muito próximas de nós. Mais do que uma vez ao longo da leitura do livro me apeteceu ir googlar as imagens das personagens como se se tratasse de pessoas propriamente ditas, porque elas têm essa qualidade que nos faz tropeçar de vez em quando na realidade e esquecermo-nos de que se trata de meras personagens de ficção.
Claro que se poderá sempre criticar o Maupin por não conseguir abandonar o universo das Tales of The City. Mas este regresso à série mostra um Armistead Maupin em elevadíssima forma, e prova de que não é por isso que ele não deixa de ser um grande escritor.