Aug 06, 2007 17:48
O que se segue é uma entrada do diário que fui mantendo irregularmente antes do innersmile
Domingo, 30 Julho 1995
Oito dias na Irlanda, entre 15 e 23 deste mês.
Terra fabulosa. Dois fins-de-semana em Dublin (cidade de poetas, músicos e bebedores de cerveja) e 3 ou 4 dias a passear (de carro!, fartei-me de guiar na contramão) pelo país. A paisagem é lindissima. As pessoas simpáticas. Comprei cd's (só de música tradicional irlandesa), livros (Uma biografia fragmentada de Ray Carver, uma colectânea de poemas de W.B. Yeats, a biografia de Ian Curtis dos Joy Division, o segundo volume das Tales of the City de Armistead Maupin, a The Barrytown Trilogy de Roddy Doyle, e um livro de cartoons sobre um gay Couple) e o filme de Jacques Tati, Un Jour de Fete, em video. Ah, também comprei uns sapatos em Limerick (juntando a útil ao agradável: saldos e uns sapatos velhos inutilizados com uma bosta de cão).
O itinerário do passeio foi: Dublin, quedas de água de Enniskerry, Wexford, Waterfor e dormida em Cashel; Tipperary (só o nome tem interesse, por causa da canção), Limerick, Ennistymon, Cliffs of Moher e Galway (a decorrer o Arts Festival, as ruas cheias de street performers e de pessoas a falar gaélico); Lago Corrib, Connemara (para mim, o mais bonito da Irlanda), Clifden, Westport e Castlebar (num bar, à noite, um grupo country de velhinhos com uma versão de 'If tomorrow never comes', do Garth Brooks. Magic); Roscomon, lago Reeh (passeio de hovercraft pelo lago), Athlone, ruinas de Clonmacnoise (Conimbriga poderia aprender umas poucas coisas sobre como apresentar um espaço destes), e regresso a Dublin.
Em Dublin ficámos instalados no Ormond Hotel (primeiros 3 dias), que não recomendo apesar de ser cenário do Ulysses de J. Joyce, e no Wynns Hotel, mais agradável, apesar de um assustador e falso alarme de incêndio às 3 da manhã. Em Cashel ficámos na Rochville House, um B&B que apelidámos de Bates Motel; em Galway ficámos na Balcony House, numa rua em que porta sim porta sim havia um B&B; finalmente, em Castlebar, instalámo-nos noutro B&B, cujo nome não me lembro, e em que a dona mereceu a alcunha de Mrs. Doubtfire.
Restaurantes em Dublin: Captain America, Thunderoad, Break for the Border e La Paloma. A evitar: Little Lisbon - porco intragável e nem uma ponta de cozinha portuguesa.
Lembrei-me de procurar esta entrada porque ela documenta o momento em que o escritor Armistead Maupin entrou na minha vida. Eu já conhecia o nome do Maupin, sobretudo porque as estantes da secção gay das livrarias londrinas estavam sempre cheias dos seus livros, da série Tales of The City. Comecei, como se percebe pelo texto, pelo segundo volume, e rapidamente encomendei (através da Livraria Papa-Figos) todos os restantes livros da colecção.
Tales of The City, de cujos três primeiros volumes (são seis, ao todo) foi feita uma série de televisão, com a Laura Linney e a Olympia Dukakis, conta as aventuras e as desventuras de um grupo de amigos que, ao longo de um período que vai de meados dos anos 70 a final dos 80, partilham hospedagem numa casa de São Francisco, a famosa 28 Barbary Lane. Os livros começaram por ser uma crónica de jornal e mantiveram sempre o espírito de folhetim, intercalando as peripécias romanescas (e quase sempre muito rocambolescas) com um verdadeiro espírito de crónica de costumes, dando exemplo de como se podia viver em comunidade partilhando uma grande diversidade de personalidades, antecedentes, referências culturais, géneros e orientações sexuais, etc.
Foi um dos meus autores preferidos, um dos mais importantes e decisivos nas minhas leituras ligadas à temática da homossexualidade, sobretudo porque sempre mostrou uma visão positiva e optimista de temas tão complicados como o assumir de uma identidade, os processos de revelação pública (familiar, social, laboral), as particulares formas de relacionamento afectivo, e, numa fase posterior, a questão da Sid ou os problemas do activismo. E isto, note-se, sem nunca descurar daquilo que é essencial na ficção narrativa: personagens de quem aprendemos a gostar e com quem nos identificamos, muitas peripécias novelescas (abundam as revelações escaldantes), muitos piscares de olho à realidade (ok, à da Califórnia, mas pronto, é a que o autor conhece). E sobretudo uma escrita muito ligeira, divertida, um olhar terno em relação às personagens, que resultam numa narrativa galvanizante.
Entretanto, Maupin fechou a série e, depois dela, publicou apenas Maybe the Moon (traduzido em português, tal como, creio eu, os 4 primeiros volumes das Histórias de São Francisco) e The Night Listener. Livros interessantes, historias engraçadas (o primeiro sobre uma actriz de Hollywood cujo ponto alto da carreira entrar no ET a fazer de… ET!; e o segundo, vagamente auto-biográfico, sobre um locutor de rádio que se torna amigo de um escritor adolescente que está a morrer vítima da Sida), mas sem o fulgor e o brilhantismo das Tales of The City.
E eis que 20 anos depois (os mais cínicos dirão que à procura do reconhecimento perdido) Armistead Maupin regressa, não tanto a 28, Barbary Lane, uma vez que a casa foi vendida e remodelada, mas aos personagens, seguindo de perto dois deles (os que sempre se distinguiram mais do ensemble), a quem aliás foi buscar o próprio título do livro: Michael Tolliver Lives! Até por isto, por ter posto no título o nome do mais marcante dos personagens (e seguramente o mais popular entre os leitores gays), se poderá acusar de Maupin de estar a apelar ao sucesso dos livros anteriores. Mas também é verdade que a escolha do título tem o poder de anunciar, de certa forma a razão de ser deste livro: afinal, Michael, que deixáramos há 20 anos com uma sentença de morte anunciada pela Sida, está vivo, e tem novidades para contar. O título justifica, de igual modo, que o narrador deste livro seja o próprio Michael, ao contrário do que acontecia nos livros anteriores, onde o narrador era ausente da trama, mas era quase uma verdadeira personagem, verdadeiro demiurgo, mas sempre com muito humor, ironia e ternura.
É inegável que, de certa forma, este era um livro dispensável, já que não vem trazer nada de substancialmente novo em relação aos romances originais da série Tales of The City. Digamos que actualiza a crónica de costumes, contextualizando a agenda, e resolve as personagens, traçando-lhes, ou prometendo-lhes, um destino. Mas se pode parecer pouco como programa para um romance, a verdade é que Michael Tolliver Lives! traz-nos de volta personagens e situações que amámos e vivemos com intensidade, e devolve, de modo quase intocado, o prazer de ler um excelente cronista de costumes, escritor de mão leve e espírito arguto e humorado. Não são todos os escritores que nos conseguem fazer viver emoções e sentimentos, que nos provocam a cumplicidade do sorriso ou a comoção das lágrimas, apenas com essa simples matéria inóspita que são as páginas de papel manchadas de tinta. Só por isso, mas sobretudo por tudo isto, Michael Tolliver Lives!, de Armistead Maupin, é um dos meus, pessoalíssimos e intransmissíveis, livros do ano.
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