bunker club: Traudl, Hitler e uma mosca

Aug 30, 2005 18:13

Traudl atende o telefone que se limitou a piscar um díodo de luz vermelha. Esteve tão mudo quanto eu enquanto olhava para ela, e tão mudo quanto ela está agora. Alguém lhe fala e ela só ouve, sem nunca responder. Por isso mesmo é que as suas únicas palavras quando levantou o atendedor ainda ecoam em mim: - “Quem fala?”. E vai ricocheteando nas paredes do bunker: “Quem fala?”, “Que fada?”, “Quem fode?”. Os olhos dela estão quietos, e a sua quietude cega-os. Ela só vê quem quem lhe fala do outro lado. Está muda e cega.
Anda aqui uma mosca que nem sequer levantou voo quando a última bomba soviética caiu. Aqui tão perto que o meu quadro, que estava há tanto tempo pendurado na parede, caiu e a sua moldura desfez-se em pedaços. Vi cada pedaço desfazer-se em pó e desaparecer, mas agora estão todos outra vez ali, mortos e à espera que alguém os apanhe. Traudl também não se mexeu, mas agora pousou o telefone e abanou a cabeça em sinal de negação. Não há forma de responder aos comunistas, portanto.
É tão estranho pensar que daqui a pouco estarei morto, Traudl talvez também, e que esta mosca tem grandes possibilidades de ver o dia de amanhã nascer. A Traudl posso pedir alguns minutos de sexo antes de me matar, e à mosca posso tentar dar um murro esmagando-a contra a parede. Não sei porquê mas queria ambos com a mesma intensidade. Só não me encontro com forças. Quando tirei o retrato que agora jaz rasgado no chão, lembro-me que o fotógrafo tremia, e deixou de o fazer quando lhe sorri. Ninguém me sorri agora a mim, e tenho medo.
O díodo pisca de novo mas Traudl não atende. Está na porta e quer partir. Se viver de certeza que amanhã dirá que nunca ouviu falar de Auschwitz nem da solução final. Trair-me-á, ou talvez não. A mosca já saiu. Não a posso esmagar. Sou um imbecil.
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