Crescer.

Sep 10, 2006 01:04

Sinto de novo que não tenho palavras. O que posso dizer? Para quem, e como, e quando, e onde posso falar do que sinto e do que penso, da confusão inexpressável em que me afundo?

Podia-vos falar da mulher à janela. Sim... Porque hoje olhei para ela e vi que era uma mulher. Ela passou o dia à janela, como tem feito tantas vezes nas ultimas semanas, a olhar o mar. Apoia os braços no varão de ferro forjado e inclina o corpo delgado perigosamente para fora, deixando que o vento desfaça as suas tranças compridas.
Nos ultimos dias tenho passado o tempo a entrançar-lhe o cabelo, enquanto desfio ladainhas antigas, empurrando-a para aquele torpor que a mantem longe da loucura. Canto-lhe do ondular da água, da luz quente do sol, das praias brancas e distantes. Canto-lhe dos bosques da nossa infância, do verde, da liberdade. Canto-lhe de quando a dor era efémera, de quando a morte estava tão longe quanto hoje parece estar o nosso coração.
Canto-lhe dos sonhos bonitos... Ontem de manhã vesti-lhe um dos meus corpetes vermelhos, para dar cor ao seu corpo franzino. Espartilhada, a minha pequena bonequinha, parecia um anjo, os olhos brilhantes, as faces rosadas do frio, o cabelo feito de vento...
Fizemos quase as pazes. Sei que ela ainda dorme com um punhal sob o colchão, mas temos deixado as espadas longe dos nossos sonhos. Ela precisa de mim, agora... Precisa que a abraçe e a embale. Agora que o corpo recuperou, precisa que eu cure a alma.
E nós, nós as duas, precisamos dele. E ele... Levou-o o mar. Para longe. É escusado perguntar à minha mulher-menina quanto tempo ela pensa ficar a secar as lágrimas junto à janela: Nenhuma de nós vai para longe enquanto o seu barco não regressar.
Nenhuma de nós regressa aos prados verdes do norte sem saber se ainda somos sereias num porto de sonho.
Eu imagino-o tal como o vejo nos seus olhos... Nessa imagem que alimentamos e adoramos, nós as duas somos iguais. Na proa do navio, a olhar o horizonte, os olhos castanhos e humidos perdidos na comtemplação de uma alma. E eu desejo dizer-lhe o quanto nós sentimos a sua falta. O quanto o amamos. Desejo contar-lhe os dias que nós ficamos a olhar o mar, o mesmo mar e o mesmo céu que ele comtempla, na dúvida sobre se são os nossos olhos que ele vê quando olha a água.
Mas o mar é vasto. Não há morada para onde escrever, não há buzios que tragam a voz lá de onde ele está, onde bem podia ficar a outra ponta do mundo.
Um dia disse-lhe que ia aprender a fazer projecção astral. Mas não aprendi, e não sei quão longe se pode uma alma aventurar na ausência. Ainda sou uma aprendiz de feiticeira.
Nós, eu e ela, somos frágeis. Talvez nós, todos, sejamos frágeis. Hoje eu vi o tempo passar, os anos, e o peso do tempo, o nosso tão pouco, o do Todo infinito, abateu-se sobre mim. O rosto da menina com que lutei, a vida ténue que pensei roubar, tornou-se hoje no rosto de uma mulher, numa vida larga e imensa que se prendeu nas teias do mundo. Esta mulher na janela, reflexo de mim, eu e ela, somos agora muito mais que uma menina bonita com caracois e pele de porcelana, ás vezes pequeno anjo, ás vezes pequeno demónio. Somos, e temos que ser, muito mais que os nossos medos. E quando entranço o cabelo dela, e quando entranço nele a Vontade, sei que podemos ir mais longe. Sei que ela pode, finalmente, ceder à força de que sabe ser herdeira, e sei que eu posso, finalmente, aceitar que só pela espada não se ganha o mundo.
Ela deixa-se cair sobre o meu peito e eu envolvo-a nos braços, percorrendo suavemente o seu corpo com carinho, embalando-a, deliciando-me com a seda sob os meus dedos, o calor suave e esta sensação de rendição. Temo-nos uma à outra, no amor e no ódio, e será sempre tudo ou nada.
Ela, pura, gentil, bela. Eu...
Eu amo-a. Gostava de ser pura como ela, de ter esta fé, esta devoção cega. Doi tanto ver o amor puro que ela alimenta, e ver-me tão egoista que só penso no sofrimento. Doi ver que ela oferece ao mar a alma, em troca de um par de olhos bonitos, em troca do homem que, ambas, amamos. Ele devia ama-la a ela. Ela segui-lo-ia até ao infinito. E ela não me ama a mim. Eu? Eu amo-os aos dois. E por amor a ele, resigno-me, e por amor a ela, espero, confiando nela cegamente, e, por ela, nele.
Se ela cair, mesmo sendo a mulher que se tornou, será que se quebra?
E eu? será que cresci como ela, ou será que continuo a mesma bonequinha de porcelana?
E ele?... Será que os marinheiros, mesmo quando amam, voltam sempre do outro lado do mar?
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