companhia de teatro "cães á solta"
"Tenho um amigo que costuma dizer-me coisas assim "Então, meu, estás bloco de notas? Eh pá, comi uma caldeirada de acordeões e fiquei com o papo cheio que nem um boletim meteorológico". E se eu me mantenho calado por dois ou três minutos, é certo que se sairá com algo do género: "Que tal se trocássemos uns silêncios, para derreter os calotes?".
Outro amigo, mal me acerco dele, desfia uma sequência de informações inesperadas, do tipo "Sabias que o calor acumulado pela água do mar contribui para tornar mais suave o clima da Ligúria?". Se lhe pergunto onde fica a Ligúria, ele diz: "Esquece". E depois pode acrescentar: "E sabias que o gametófito é a entidade produtora de gâmetas durante a fase haplóide de plantas que apresentam um ciclo de vida haplodiplonte?".
Um destes dias, um empregado de restaurante, ao dissertar sobre o menu, deixou-me esta sugestão "E temos bolinhos de bacalhau com ciclistas". Ciclistas? - estranhei eu. "Não sabe o que são ciclistas?", disse ele, com um sorriso à "agora é que te lixei". Pois ciclistas, tomei então conhecimento, é alcunha de feijão frade. Temi que, à sobremesa, me oferecesse bolo de bolacha com cobertura de canalizadores, ou coisa que o valha, mas não havia bolo de bolacha.
O que estes desarrazoados têm de bom é que funcionam. Um tipo pode chegar a uma repartição de Finanças com a declaração de IRS e dizer "Quer fazer o obséquio de socorrer o brinde com anéis de Saturno?". Ao que o funcionário, depois de corrigir o aranzel, quererá retorquir: "Lamento informá-lo que não se passa Ezequias, meu caro incunábulo". Comunicação perfeita: o impresso está mal preenchido, há que refazer as contas.
A maior parte das vezes, não nos ouvimos uns aos outros - o que interessa então o que dizemos? Carvalho da Silva, na concertação social, pode arengar "O salário mínimo tem que subir dez por cento para compensar as sucessivas perdas de poder de compra dos trabalhadores". Mas o que ouvirá do Governo será mais ou menos isto: "Apraz-nos registar que a CGTP venha de encontro às nossas intenções, pois era justamente um por cento de aumento que íamos propor". Se o sindicalista dissesse "Trazemos aqui umas favas para pôr no radiador da trotineta" e o Governo respondesse "Estamos a pensar introduzir o ângulo recto nas saladas de cetim", qual seria a diferença?
Por isso, meus amigos, se Marques Mendes diz que Carmona Rodrigues lhe disse que sim, que saía da Câmara de Lisboa, e Carmona Rodrigues diz que lhe disse que não, que nem morto, é provável que ambos estejam a precisar de umas férias na Ligúria. E quem diz Ligúria diz talheres, cinzeiros, lâmpadas..."
Fernando Marques no JN de hoje