Jun 27, 2014 04:19
Sentei-me na cama, defronte a janela. Meus braços caíram pesadamente, segurando a folha de papel que guardava a revelação sobre uma parte substancial de minha vida, uma que nunca se realizaria. Reli as palavras até ficar zonzo, a dor da perda ainda recente demais para ser deixada de lado. Até ali, todos me haviam dito que as coisas acontecem como têm que acontecer; eu não conseguia me conformar. Pensei em Bernard, pensei em quão doloroso devia ter sido passar por tudo aquilo sem poder pedir ajuda. Todas as fraturas, todas as hemorragias. Amarfanhei o papel quando levei as mãos à testa, deixando os cotovelos apoiados nos joelhos enquanto as lágrimas afloravam, sem pudores. Eu poderia ter evitado tudo aquilo. O problema era comigo. Eram as minhas células reprodutoras que traziam anomalias. Eram elas as responsáveis pela sucessão incontável de abortos de minha ex-esposa. Se eu não tivesse sido tão medroso, se não houvesse sido tão covarde, talvez Laura nunca houvesse precisado sofrer tanto quanto sofrera. Nós não tentaríamos mais. Teríamos adotado, como Daniel sugerira. Eu estaria disposto até a criar um filho dela mesma, de outro pai.
Agora, não havia mais volta. Bernard se fora, da maneira mais cruel possível. Eu não tinha mais chances. Agora era definitivo. Eu nunca seria pai, afinal. Nunca veria um pequeno nascido de meu sangue correndo, brincando, crescendo. Nunca teria o prazer de ver seu primeiro aniversário, ou de ensinar-lhe as primeiras letras, nunca fitá-lo-ia com o orgulho incomensurável de um pai. Eu tinha toda a vontade, todo o querer, e isso nunca mais me seria ofertado. Eu não suportaria correr o risco. Jamais deixaria que outra criança carregasse o peso de um defeito genético meu. As chances de ter um filho saudável eram tão pequenas que eu não conseguia contar os zeros no papel, tantos que eram. Meus lábios tremiam. No fundo, eu já sabia. De alguma maneira, eu já sabia que não teria filhos. A confirmação servia para enterrar aquela última esperança teimosa que, flamejante, aliviava-me do peso da morte de Bernard, que me dizia que haveriam outros, que de alguma maneira novas crianças viriam. Solucei.
Não precisei me virar pra perceber a aproximação de Daniel. Suavemente, sua mão pousou sobre meu ombro, acariciando-o devagar. Entreguei-lhe a folha amassada sem que ele sequer se apercebesse dela.
- Não é como se nós pudéssemos engravidar, ou criar uma criança sozinhos, mas... - Rilhei os dentes e concentrei-me em tentar respirar. - Não sei... Eu tinha esperanças.
Ele afastou o papel, deixando-o cair sobre o colchão, e sentou-se atrás de mim, enlaçando-me com força, envolvendo-me em um abraço dolorosamente condoído.
- Eu sinto muito, Thom. - Naquelas quatro palavras, sabia que ele conseguia concentrar uma resposta a tudo o que eu sentia: à dor, à culpa, ao medo, àquela esperança tênue que escorria parecia que para sempre. Eu sabia que ele seria capaz de praticamente qualquer coisa para que eu parasse de sofrer por aquilo. Era o primeiro final de semana que ele obtinha com as meninas, depois do litígio da guarda, e eu detestava arruinar sua felicidade por um motivo já antes repisado.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Eu não sabia como voltar para a sala e encarar as meninas; pensei seriamente em me despedir e ir embora. Quando estava prestes a comunicar a decisão para Daniel, porém, pequenos passos invadiram o quarto, devagar, temerosos. Voltei-me para a porta, vendo Marie Anne parada, nos encarando. Seu pai prontamente se desvencilhou de mim para pegá-la; seu rosto tinha ainda marcas do travesseiro onde deitara para a soneca da tarde, no sofá. A pequena não objetou, mas continuou me fitando, até que Daniel a trouxe para perto de mim. Delicadamente, ela estendeu a mão e tocou-me a face.
- Machucou, tio Thom? - Sorri, frágil, tentando engolir a nova onda de lágrimas que acorreu a meus olhos. Assenti. - Tá doendo muito? - Mais uma vez, confirmei com a cabeça. Então, como se pedindo permissão, Marie Anne olhou para o pai, que a soltou. Sem hesitar, ela ergueu os braços e enlaçou-me o pescoço, apertando com toda a força de seu corpinho diminuto. Correspondi, levemente. - Vai passar. A gente vai cuidar de você, e vai passar.
Naquele momento, o último fiapo de esperança, que imaginei ter perdido com aquele exame, insurgiu contra mim. Acariciei os cabelos de Marie Anne, sob o olhar complacente de Daniel, e fechei os olhos, drenando forças daquele ente tão pequenino, que eu vira crescer. Ela tinha razão, daquele jeito como só as crianças conseguem ter. Eles existiam. Cuidariam de mim. Aquilo tudo, uma hora, ia passar.
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