esta é uma história de faltas e silêncios. o sopro afogueado de não haver janelas de embacio possível; eu e os outros sem saber se respiramos para fora ou para dentro, um desejo frio de vidros partidos. do tempo dos pés em todo o lado, das viagens de carro sem sair do mesmo parque de estacionamento, virámos para correrias por ruas cansadas e escorregadias.o meu taximetro começou a contar sem querer - roteiros dirigidos a lojas de discos tristes e histórias de amor sonorizadas - e abriu-se em nós um picotado. de dentro da minha boca surgiu um casulo roto, uma borboleta mate, o desconforto. ainda te sinto o cheiro dos dedos transpirados - uma torneira nas mãos quando me aproximava mais de ti -, um gosto seco de pó, os sítios todos em que parávamos para qualquer coisa de imperativos olhos nos olhos. descobriste-me a cidade, a praia e as vistas muito altas. descobriste-me a incapacidade e os desejos de subversão, os alicerces submersos. um dia, parada a correria e a mão em sangue, apontaste-me um pequeno motim sem dedos que me acusassem de nada. devolveste-me cápsulas de balas frias e enjaulaste-me - um animal pequenino a crescer vertiginosamente. eu via-te de olhos fechados e era a minha única maneira. desgostaram-me sempre as camisas de forças para dois, os quartos duplos de única cama. nunca gostei que me roubassem os óculos de encarar o sol de frente, que me fechassem as janelas e me achassem propensa a correr atrás de cenouras desesperadas: sou um bicho que se finge morto, que sussurra baixinho ao sono dos outros, que planeia fugas ao sol. tiveste os teus motivos como temos sempre todos. se quisermos - só se quisermos -, há de haver sempre uma declaração de legitimidade para todas as loucuras, para todas as vezes em que escolhemos parar de pensar para fora e soltar o monstro, incendiar tudo, partir o metro e esquecer limites para o bom tom do que pode ser dramático. houve instantes em que me compadeci do passado que te construiu, das peças que te faltavam para uma fotografia bonita de ti - tu às voltas com a necessidade de uma legenda decente, exaustiva, que te deixasse descansar. outras vezes, eu própria de bandeira branca em punho, a contar-te de como não me fiz assim de propósito mas a saber que sim, que é porque quero, porque me deixo levar, a mostrar-te cicatrizes que cuidei - uma estufa escondida de madressilvas e urtigas. na verdade sabemos os dois muito bem onde nos deixa o processo e é ridiculamente interessante fingir uma surpresa, um desajeito, uma impotência involuntária e inesperada como um acesso, um AVC emocional com uma língua branca, de papel. o tempo vai voar, assim como tu, e os meus dias andarão esfomeados à espera do encontro com outro parceiro de jogo, alguém que seja bom à batota, suficientemente bom para convictamente fingir que não joga.