Dec 23, 2003 14:18
"Oh, he's a lucky guy, oh, he's a lucky guy
He doesn't worry about me when I'm gone
He goes to sleep at night
He don't turn off the light
And wonder how to find me
Or if I'm alone
Oh, he's a lucky guy
I wish I was like him
Cuz when he talks about me
He don't look this way
He's a lucky guy
He used to walk with me
He used to talk to me
See, we have these secrets
That no one else could hear
Well, he's not the only one
No, no not the only one
But what happens to them?
Do they matter?
Do they disappear
Into a lonely girl?
Now I'm a lonely girl
Cuz I want somebody with me in the world
Oh, he's a lucky guy
Fortune walks right in the door
And here I am
Just like before
Well, I'm not gonna turn around
I'm not his pretty clown
I'm not the one caught
Like he thought
He was the last one I had there
Cuz I did a foolish thing
A real, real stupid thing
I told him I love him
And I want him there
When I knew he wouldn't come
And I knew he didn't care and I'll cry awhile
I'll cry awhile
But when I wake up
Tomorrow is a new day
I'm a lucky guy
Hey, I'm a lucky guy
Real, real lucky guy
Hey, I'm a lucky guy"
"Lucky Guy" - Rickie Lee Jones
Neva . A janela não abre, presa no gelo formado durante a noite e ouço o burburinho da cidade que não dorme lá em baixo.
Levanto-me com a preguiça dos dias frios e depois de um banho quente, desço os cinco andares em caracol do nº27da Rue Drouot e atravesso a rua até ao Paul & Marcy. Comem-se aqui as melhores brownies quentes com crème fraîche do mundo e não acredito que existam empregados mais bonitos. E mais gay, também. É uma pena, digo-lhes todos os dias, se quiserem mudar de ideia, perguntem pela minha porta à concièrge e subam, a minha cama não é grande mas apertadinhos com certeza ficamos confortáveis. O Didier ri-se muito e repete sempre a mesma história, a minha conversa com a Sandy quando eu tinha doze anos e lhe disse que quando crescesse, queria ser gay, e enfim, agora cresci e não sou, ele também acha uma pena e serve-me um cacau quente enquanto dou uma vista de olhos ao primeiro jornal que me aparece à frente.
Digo um até logo, não Silvain, hoje não venho almoçar e não, também não vou ter com ninguém, e atravesso a rua para entrar no Metro. Le Peletier, é a minha estação. É pequena e não faz ligação com nenhuma outra, mas prefiro assim, no outro extremo da rua, em Richelieu Drouot, desembocam os turistas para o Boulevard des Italiens, o Musée Grévin e o Hard Rock Café e é tudo demasiado confuso para um dia sem pressas como este.
Desço na Gare de L'Est e vou até Clignancourt. O Marché aux Puces é um dos meus sítios favoritos quando sinto a tua falta . São dezenas de barracas repletas de pequenas coisas que podia oferecer-te. Nunca compro nada, mas perco-me em pequenos objectos e nos discos em segunda mão que sei que gostas e não tens e se é bem verdade que me consome a ausência, não o é menos que o saber o que te agrada me faz sentir bem comigo. Gosto da ideia de saber que ias adorar aquelas coisas, aquele mercado e as barraquinhas de comida chinesa com luzes amarelas e azuis penduradas. Deixa-me menos triste saber que apesar de tudo, foi contigo que aprendi a religiosidade dos pequenos detalhes e que mais que a mágoa e a rejeição, é um sorriso cúmplice (cúmplice de quê?de quem?isso não interessa, não me faças perguntas às quais não sei responder) que toma conta de mim quando me apercebo de que sei que estas seriam as coisas que te fariam alegre num dia mau.
Não é com tristeza que saio do mercado. De mãos nos bolsos, no caminho a pé até Anvers, penso em ti como uma canção bonita do Brel que alguém me cantou, e aconchego o nariz gelado dentro do cachecol. Um dia, do desejo não vai sobrar mais que o disco do Tom Waits a lembrar o que nunca chegou a ser e quem sabe?, talvez, só talvez, vai estar alguém sentado no sofá da sala, com a cabeça para trás a cantarolar baixinho o "Lucky Guy" da Rickie Lee enquanto eu faço chá de maçã, e não vais ser tu, nem ninguém parecido contigo, porque é mesmo assim que a vida corre.
Gosto do funiculaire de Montmartre. Gosto de chegar ao topo, subir o último lance de escadas até à Sacré Coeur, e sentar-me num canto a sujar a boca no crepe a escorrer Nutella que tenho de comer depressa, antes que se me gelem os dedos por tirar as luvas. Às vezes sinto-me um bocado como o Franz, um dos amantes da Sabina (era Franz o nome deste amante?) que a imagina a observá-lo em tudo o que faz. Repito para dentro e tu, o que é que tu ias dizer agora?, ad nauseum, mesmo sabendo que tu se calhar, nem ias dizer nada. E que mesmo que me conseguisses ver agora, ias olhar para o lado e não ias conceder-me mais que um olhar de relance. Incomodam-te os teus enganos, no fundo és igual a toda a gente. Se não gostasse tanto de ti, o mais certo era achar-te desprezível, mas gosto de sentir que existes em cada canto desta Paris que eu amo tanto.
O Caetano cantava: "saudade até que é bom, melhor que caminhar vazio/a esperança é um dom que eu tenho em mim./Não tem desespero, não, você me ensinou milhões de coisas/Tenho um sonho em minhas mãos, amanhã será um novo dia/Certamente eu vou ser mais feliz." Nunca entendi o que isto queria dizer até o dia em que me dei conta que não estavas comigo, e só posso agradecer-te por me mostrares que não só entendo estas palavras, como as sinto como uma verdade absoluta.
Desço a escadaria a pé e vou até Barbès apanhar o Metro de volta para casa. Volto a descer na Gare de L'Est e saio em Richelieu Drouot desta vez porque não quero que me vejam passar no Paul & Marcy. Já sei que me iam chamar para jantar e eu não tenho fome, comi agora um crepe e o Didier não ia gostar, ia ralhar comigo e dizer que não cuido de mim, que é uma doideira correr Paris a pé e só comer porcarias de chocolate o dia inteiro. No fundo, eu sei que ele até ia entender, mas não lhe quero explicar que num crepe com Nutella encontro o prazer de sentir a tua falta e que não preciso de mais nada para estar bem. Amanhã de manhã, volto ao café e deixo que me preparem um pequeno almoço de princesa. Sim, porque mesmo que não tenhas reparado, eu sou uma princesa e no meu reino, não há lugar para encontrar tristeza em coisas que nunca foram.