Apr 23, 2004 23:45
(...) Mais pela luz doce do que pelas vozes das mulheres que falavam umas para as outras, mais pela luz doce do que pelo olhar também doce da freira, ela acordou. Tão feliz. A sua cama era a terceira a contar da janela, na fila que ficava à esquerda do olhar da freira. Ao abrir os olhos, a luz da manhã. Sentia no corpo a combinação e os lençóis mornos. Levantou o braço sobre o cobertor. Já fora da cama, enquanto vestia o roupão e calçava os chinelos, lembrava-se ainda do sonho que tivera. Lembrava-se do sonho como se sonhasse ainda. Sorria. Tinha sonhado que era nova e que não estava no asilo. Era nova e estava em casa. A mãe chamava-a da cozinha. Era nova. Tinha sonhado. Tinha acordado tão feliz. Era nova. A mãe chamava-a da cozinha. No sonho, tinha um pedaço de espelho na mão. Os seus cabelos eram longos e viçosos. A sua pele era lisa. Os seus olhos eram novos e brilhavam. Tinha sonhado. Com a toalha dobrada sobre o ombro, com o sabonete na mão, esperava na fila para o banho. Ela não estava habituada, mas as freiras diziam que todas as mulheres tinham de tomar um duche ao acordar. Ela respeitava as regras do asilo. O vapor envolvia-lhe o olhar. As vozes das mulheres à sua volta eram uma coisa que acontecia num sítio onde ela não estava. Tinha sonhado que era nova. Como se sonhasse ainda, sorria.
Acordou incomodada.
(...)
Entrou no seu quarto com medo de dormir. Despiu-se, pôs a camisa de noite. Deitou-se debaixo dos lençóis frios. Ficou inquieta durante muito tempo. Estava nervosa. Estava incomodada. Dava voltas na cama. Tinha medo de adormecer e de sonhar de novo. Cada instante da noite parecia muito grande. Mas depois de muito tempo, depois de ter passado muito tempo dentro da noite, depois de o tempo já não se distinguir da noite longa, vasta, imensa, o seu corpo perdeu as forças e finalmente adormeceu.
(...)
Naquele dia tinha sido tão feliz. Assim que acabou de comer quis ir para a cama. Queria dormir. Queria sonhar. Queria ser nova durante mais um dia.
Acordou tão feliz. Assim qu percebeu que estava acordada, acordou dentro dela um júbilo infinito porque percebeu que tinha sonhado de novo. Deitada, rodeada de vozes de mulheres a acordarem também, sob o olhar da freira, estava deitada, rodeada de uma luz fria, sob o som do cão a ladrar preso ao limoeiro do quintal. Acordou incomodada. Tinha sonhado de novo. Levantou-se da cama. Na fila para tomar banho, sentia nos braços os arranhões suaves das cascas de lenha que carregava para o lume. Enquanto riscava um fósforo, abria a torneira da água. A pequena chama pegava-se à pinha. Com as costas da mão, via que a água do chuveiro já estava morna. Sentia a água no corpo velho, novo. Sentia o calor do lume no corpo velho, novo. A irmã estava ao seu lado enquanto passava o sabonete pelos braços. Agachada diante do lume, ouvia as vozes das outras mulheres. A mãe andava na cozinha de um lado para o outro. A mãe andava na cozinha de um lado para o outro. A irmã estava viva. A mãe estava viva. Velha, nova, aceitava mais um dia. Queria viver.
José Luís Peixoto, A mulher que sonhava
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Os sonhos são deliciosos, mas confundem-se tanto com a realidade, por vezes, que tudo pode tornar-se obsessão, tudo pode deixar de ser nítido ao ponto de perdermos a capacidade de distinção entre realidade e sonho.
Um dia estou também eu num asilo, porque o sonho foi condenado. Mas ninguém pense que me fará parar! O sonho sonhado de pés aacimentados são a minha vida, parte da minha força, da minha coragem dura e inderrotável.