Sede de conhecimento

Jun 23, 2004 01:56


  Na idade dos porquês

Professor diz-me   porquê?

Por que voa o papagaio

que solto no ar

que vejo voar

tão alto no vento

que o meu pensamento não pode alcançar?

Professor diz-me   porquê?

Por que roda o meu pião?

Ele não tem nenhuma roda

E roda   gira   rodopia

e cai morto no chão...

Tenho nove anos   professor

e há tanto mistério à minha roda

que eu queria desvendar!

Por que é que o céu é azul?

Por que é que marulha o mar?

Porquê?

Tanto porquê que eu queria saber!

E tu que não me queres responder!

Tu falas falas   professor

daquilo que te interessa

e que a mim não interessa.

Tu obrigas-me a ouvir

quando eu quero falar.

Obrigas-me a dizer quando eu quero escutar.

Se eu vou a descobrir

Fazes-me decorar.

É a luta   professor

a luta em vez de amor.

Eu sou uma criança.

Tu és mais alto

mais forte

mais poderoso.

E a minha lança

quebra-se de encontro à tua muralha.

Mas

enquanto a tua voz zangada ralha

tu sabes   professor

eu fecho-me por dentro

faço uma cara resignada

e finjo

finjo que não penso em nada.

Mas penso.

Penso em como era engraçada

aquela rã

que esta manhã ouvi coaxar.

Que graça que tinha aquela andorinha

que ontem à tarde vi passar!...

E quando tu depois vens definir

o que são conjunções

e preposições...

quando me fazes repetir

que os corações têm duas aurículas e dois ventrículos

e tantas

tantas mais definições...

o meu coração

o meu coração que não sei como é feito

nem quero saber

cresce

cresce dentro do peito

a querer saltar cá para fora

professor

a ver se tu assim compreenderias

e me farias

mais belos os dias.

Alice Gomes (1946)

Neste momento, sou mais uma das muitas pessoas que ao ler este poema se lê a ela própria. Neste momento, compreendo cada verso deste poema. Neste momento, sou aluna.

E amanhã? Serei professora. É certo. Continuarei a compreender o lado que hoje compreendo tão bem? Conseguirei fazer com que este poema não me seja dedicado?

Não sei. Não posso saber. Sei que tentarei. Sei que me esforçarei. Sei que darei tudo de mim para o conseguir!... Por ter gosto na minha profissão e amor aos meus meninos.

Um dia direi se a minha vontade e força foram ou não suficientes. Um dia direi se me sinto ou não realizada. Um dia sentirei se fiz ou não algo por e para alguém.

Um dia... não hoje.
Previous post Next post
Up