Último adeus

Jan 20, 2010 04:16



“Tenho que ser fiel a minha covardia e responsável aos meus atos como nunca antes fui. Devo - e estou reconhecendo o que fiz ante você - dizer por que te abandonei. Eu apenas nunca te quis ver dessa maneira, não é nem nunca foi de mim a morbidade dos atos humanos, estes que fingem, aliás, estes que impelidos numa obrigação estão à mercê dos outros. Se eu houvesse ficado ao seu lado naquela cama de hospital, seria por obrigação e penitência. E você bem sabe quais são meus pensamentos sobre estes miseráveis sentimentos, eu apenas segui justo em minhas palavras e não voltei arás. Eu não, e nem nunca retornarei no que tenho dito. E não me desculpo por te abandonar logo agora.
Deixei o seu apartamento intacto pela madrugada de ontem (aposto que sua mãe se sentirá satisfeita em me ver longe daquele imóvel) e creio que este bilhete foi entregue a você por meio das mãos daquele seu depravado amigo que agora - tenho absoluta certeza que está a dizer o quão canalha sou (não que eu espere que ele vá entender) - não entenderia o que fiz além de você.
Tudo o que posso lhe dizer é que eu não estava disposto a estar ao seu lado, enxergando toda a dor dessa absurda doença que vem te carcomendo com o zunido de cada contagem de segundo naquele maldito relógio ao final do corredor desse hospital. Não haveria em mim a paciência de enxergar a cor e o brilho de seus olhos expirarem, os seus lábios murcharem e você se tornar algo duro e rígido largando em minha língua um gosto amargo. Jamais teria tido essa capacidade.
Eu chorei como nunca por você. Mas as coisas apenas vão e não há tristeza que as façam voltar desse caminho frio que é a ida. Culpei Deus por algumas vezes, aliás, fui embora O culpando por ter lhe privado de suspirar por seus próprios meios, de lhe privar o sabor que é viver livre de injúrias e do enjoativo fedor do álcool hospitalar. Ele foi maldoso com você, meu amor. Ele foi apenas injusto ao punir um ser tão indefeso e conceder asas a tantos homicidas largados neste mundo. Fui embora chorando e perguntando o porquê Dele ter escolhido lhe enxergar de forma tão impiedosa. Se Ele me respondeu, meus ouvidos não foram capazes de escutar.
Houve um momento em que, quando você apareceu na minha frente com um papel em branco e talhado com a insígnia de um laboratório onde acusava claramente a maldição que crescia no seu ventre, eu quis que metade daquilo estivesse encravado em mim também. E não pude deixar de me desesperar ao perceber que te perderia. Você sabia, sempre soube que não havia métodos disso não acontecer, meu amor. Mas eu resolvi mentir para nós, enganando-nos com terapias ridículas que apenas lhe fizeram um mal maior ainda.
Eu te abandonei por medo, por frívolo medo de não agüentar te ver selar as pálpebras na minha frente! Como eu poderia carregar o fardo de ver seu corpo moribundo? Um corpo que antes carregava dentro de si uma alegria resplandecente, uma vida intacta? Um corpo que eu amei e amei por tantas vezes sendo entregue aos cuidados de vermes? Capaz de, quando a terra batesse em seu caixão, eu me fizesse enterrar também e ao seu lado.
Apenas quero guardar em minha mente o seu rosto corado e lívido. Quero lembrar a cada dia do seu perfume fresco durante a manhã, do seu sorriso enquanto cozinhava num sábado, o seu grito estridente quando se irritava por ter que recolher os meus livros jogados na sala. Ainda quero sonhar com seus lábios carmim chamando o meu nome incessante vezes nas noites em que éramos unicamente eu e você. E quando eu escutar Sunshine do Nazareth, quero lembrar de você dançando sobre a mesa, cantarolando e trocando o refrão devido ao seu inglês precário.
Não quero me atolar com as recordações da sua dor, dos seus olhos mortos, dos seus gemidos que cortam cada pedaço da minha pele e devoram minha alma. Eu só não agüento. Assumo-me fraco diante de qualquer um.
Mesmo se estivesse ao seu lado agora, segurando em sua delicada e magra mão decorada por seringas, eu não lhe daria vida. Não adiantaria meus gritos, soluços e insultos contra o destino - ainda sim você se dissolveria. E eu continuaria te amando sozinho e perdido como faço agora distante dos seus olhos.
E a única diferença, e o que eu evitei, foi não te ver morrer.”

conto

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