I
04 de Janeiro de 1963
Não me recordo da primeira vez em que eu o vi. Talvez tenha sido na rua ou no pátio do colégio, aliás, eu não conseguiria identificá-lo naquele lugar, éramos todos iguais - uniformizados de azul e branco, garotos que entravam na puberdade e que se comportavam da mesma forma.
De verdade, eu o enxerguei quando ele quase fora esfolado na esquina de duas ruas acima da minha casa. Era absurdo um garoto daquele tamanho (pequeno e com formas delicadas) ser jogado de um lado para outro como se fosse um boneco de pano maltrapilho, e com uma atenção desfocada, me escondi atrás de um poste tentando observar melhor a cena. Meu peito encheu-se de raiva e de injustiça e... de algo a mais que não saberia nomear muito bem, talvez preocupação e empatia. A dor daquele garoto parecia tornar-se minha, e uma série de formas para acabar com os dois agressores me invadia, pensei em socá-los até sentir o calor do sangue de cada um em minhas mãos ou estrangulá-los e esperar para enxergar o nariz reclamar por ar; e tanto mais ações pintadas de heroísmo adolescente, mas não fiz nada a não ser esperar pacientemente o pobre garoto ser deixado sozinho.
Me aproximei sorrateiramente e lá estava o menino com a face tingida de vermelho e roxo. E instintivamente meu coração pulou com tamanha afeição por um par de olhos negros. O que fiz a seguir foi o que qualquer um faria - agachei para limpar e tocar o sangue que escorria de um lábio partido.
II
Ele se chamava Miguel, assim como um anjo de Deus. E que se um nome pudesse influenciar numa pessoa, não o fizera em nada com esta. Se havia algo de angelical naquela criatura, estaria mentindo.
A respeito da surra que eu o vira levar e minha atitude, Miguel dissera claramente que não aceitava misericórdia alheia, e que eu enfiasse minha bondade num outro local porque não, ele não precisaria dela. E não pude reprimir um sorriso divertido no rosto, era uma fúria que não condizia com seu tamanho ou a sua expressão e delicadeza. Levei um murro naquele mesmo dia, um murro que deslocara meu nariz do seu reto eixo e que até hoje, a leve inclinação para o lado direito é vista.
III
15 de Março de 1963
Tornamo-nos amigos.
Eu praticamente contei inteira a minha pacata vida de dezesseis anos a ele, e quanto sobre a de Miguel, eu conhecia pouco. Ficava irritado quando eu lhe fazia alguma pergunta pessoal - tal como sobre sua mãe, pai, se tinha irmão, onde fica a sua casa Miguel? Quando me respondia, soltava vagos sons para logo me mandar calar a boca, e eu o simplesmente fazia (mesmo que secretamente sentisse certo prazer em vê-lo irritado). Tinha um gênio difícil e imaleável, o que apenas me fazia adorá-lo cada vez mais.
Miguel sempre obtinha a palavra final em tudo, o que me fazia acatar cada uma. Se me pedia para não ir ao colégio porque iríamos passar a manhã inteira enfurnados na cabana (um barraco de madeira perdido num pedaço de floresta que havíamos encontrado) bebendo e fumando, eu não iria ao colégio. Se me pedisse dinheiro e não tinha, acabava me desdobrando para arrumar algum, até mesmo roubar de meu pai.
E tanto faz se me parecia certo ou não, eu só cuidava em ter a todo o momento o seu cheiro por perto.
IV
Vivíamos grudados o dia inteiro. Rolavam semanas e eu e Miguel continuávamos um ao lado do outro - seja de manhã no colégio ou a tarde e noite vagando pela cidade arrumando o que fazer. Éramos tal como irmãos, tínhamos a mesma idade e quase que nascemos no mesmo dia (uma pequena diferença de três dias entre o meu aniversário e de Miguel). Certa vez me ocorreu que éramos como gêmeos que completavam uma parte vazia do outro.
V
18 de Junho de 1963
Eu havia lido em algum lugar sobre Veneração de Deuses e os sacrifícios que eram feitos por amor a divindade. Alguns dedicavam animais, adornos, sangue, virgens, homens, crianças em um altar; todos com um único propósito, o de ser recompensado.
Era pleno inverno e nós estávamos bebendo uma porcaria que Miguel tinha arrumado com um cara mais velho e, talvez pelo efeito do álcool (Miguel conseguia atropelar as palavras com apenas alguns poucos goles), ele me propôs, não, ele não propôs, ele jurou que estaríamos juntos para sempre.
Juntos para sempre desde que matássemos o seu pai.
VI
Desde quando a nossa amizade se tornara a principal coisa em minha vida, eu não saberia com certeza afirmar. Talvez fora no momento em que senti o calor do seu sangue no primeiro dia em que o vi.
Quando me disse que precisava tirar o pai de sua vida, verdadeiramente não pude acreditar no que ouvi. Eu estava bêbado, mas não retardado o suficiente para não compreender o pedido necessitado que meu amigo fazia. “Eu preciso que ele morra.” E seus olhos, pela primeira vez desde que o conheço, derramaram grossas lágrimas.
Deus deve saber como sofri quando o vi chorando e enrolando a língua enquanto me implorava para livrá-lo do pai. Não pensei muito ao concordar em fazê-lo feliz.
VII
Realmente pensei, na manhã cinzenta que sucedeu a noite do pedido, que tudo não passasse de um sonho que deriva da bebida. Mas ao realizar que eu estava deitado ao lado de Miguel no chão duro e sujo daquela cabana, meu coração estremeceu e faleceu por algumas vezes seguidas. Tudo o que me vinha à mente em conjunto com o rosto adormecido de Miguel em meu braço me constrangiam.
A ânsia de vômito e um ataque agudo na cabeça me fizeram correr para o lado de fora da cabana e despejar um líquido azedo no tronco da árvore mais próxima. Eu me sentia adoecer.
VIII
21 de Junho de 1963
“Você desistiu do que me prometeu? Por que da minha parte, a promessa é verdadeira.”
Uma sensação de ternura apaziguadora intrometeu-se em meu corpo, eliminando cada dúvida que circundava minha mente. A única coisa em que eu sentia desde que eu conheci Miguel era a vontade de estar ao seu lado para sempre.
Sempre soa demais, sempre é tempo demais. Sempre é eterno. E eu queria eternamente o meu amigo.
IX
Passei a ter sonhos com o pai de Miguel. Sendo que, eu nunca vi o rosto do mesmo. Acordava durante a noite suando e por vezes gritando. Quando não era o homem não me deixando acordar, me prendendo para vê-lo expelir sangue pela boca devido à facada que eu dera em sua barriga. E eu ficava preso em seus olhos, enxergando-o morrer com o tempo paralisado. Meu amigo nunca estava por perto nestes sonhos, nunca estava ao meu lado para me tirar do quarto do pai e desfazer o agarre que o homem fazia em meu pulso.
Nos meus sonhos, o pai de Miguel tinha os seus olhos.
X
30 de Julho de 1963
Miguel não precisou me dizer da surra que seu pai havia lhe dado naquele dia em que estávamos outra vez na cabana. Havia marcas em toda a região da costela, marcas que desciam da altura do peito em linhas horizontais até o quadril.
Uma fúria inexplicável corroeu minhas entranhas, esmagando cada pensamento sensato que eu ainda poderia ter. Não conseguia entender que aquele homem, um verdadeiro filho da puta, pudesse marcar da forma mais absurda que existia, a pele do meu amigo.
XI
Aquela cabana estava impregnada de nós. Havia se tornado um lugar nosso, aonde cada tarde logo após o colégio, vínhamos. Eu poderia até mesmo sentir o perfume de Miguel incrustado nas lascas de madeira que compunham as paredes.
Nós deixávamos alguns lençóis e travesseiros largados no chão também de madeira, e ali ficávamos incontáveis horas do dia, seja deitados ou sentados ou apenas um olhando para o outro imbecilmente.
Foi na cabana que decidimos o dia em que iríamos acabar com a vida do pai do meu amigo. Ele mesmo quis discutir de que forma faríamos - uma que não fizesse barulho ou muita sujeira, enquanto nós fumávamos o que eu conseguira com o meu primo.
Eu me sentia extremamente bem.
XII
05 de Setembro de 1963
Antes que tal dia chegasse, exigi que Miguel me levasse para conhecer o homem. Nada mais justo do que fazer um primeiro contato com o filho da puta (o próprio Miguel chamava o pai daquela forma) primeiro.
Miguel não aceitou. Por mais que insistisse e implorasse e caísse aos seus pés, continuou resoluto. Foi uma das primeiras vezes que eu realmente me irritei com Miguel. Se eu estava indo fazer algo por ele - eu estava indo matar por ele - custava ao menos realizar uma de minhas malditas vontades?! Brigamos.
Lembro de ele vir em minha direção com o punho em riste e acertar o meu maxilar. Agarrei sua camiseta e vi seus olhos ampliarem de espanto quando lhe revidei o soco. Eu nunca havia se quer aumentado a voz com Miguel, imagina lhe ter batido. No outro canto da cabana, Miguel me olhava com uma expressão ferida enquanto uma de suas mãos apalpava o lábio inferior. Uma súbita apreensão e uma dor maior do que eu sentia em meu rosto, engoliu meu estômago. Tentei atravessar a distância que se fez entre nós e Miguel simplesmente me expulsou do barraco.
Fui embora tropeçando em um e outro ramo que se interpelava em meu caminho. Engoli toda a dor do arrependimento e não olhei uma vez se quer para trás.
XIII
Eu passei a odiar o pai de Miguel mais do que já fazia. Nunca nutri ódio ou mágoa de nada ou de ninguém, e qualquer um que me conhecia poderia ser testemunha de que era verdade. Atribuí o peso daquela nossa briga nas costas do homem e não fazia nenhuma menção de retirá-lo.
09 de Setembro de 1963
Estive a ponto de morrer a qualquer minuto durante os três dias em que Miguel sumira depois do dia em que eu o bati. Quando meu amigo apareceu num canto da minha rua sendo molhado pela fina garoa noturna, iluminado pela luz amarelada do poste e com um olhar vazio em direção a minha casa, eu apenas tive a certeza que Deus realmente existia.
XIV
A verdade era que eu havia mudado desde que conhecera Miguel. Nunca havia vívido nada do que vivi quando estive com ele. Nunca senti nada que pudesse se comparar ao simples estado de estar com ele. E me parecia improvável haver vida longe dos olhos negros de Miguel.
25 de Novembro de 1963
Cheguei ao ponto de andar no beiral da loucura quando ouvi minha mãe dizer que nós mudaríamos até mesmo de cidade se fosse possível para me ver longe de Miguel. Foi então que me fizeram um preso cativo dentro do meu próprio quarto.
Percebi que meus pais me queriam louco ou morto naquela época.
XV
12 de Dezembro de 1963
Eu tive que fugir de minha casa para poder vê-lo novamente.
E quando vi Miguel, a pressão que se instalara em meu peito roubava o ar cálido do início da primavera que me cercava. Meu amigo estava naquela mesma cabana, sentando em meio aos lençóis coloridos e empoeirados. Através da janela de vidro estilhaçado uma vertente da luz alaranjada do sol lhe cobria a face enquanto partículas mínimas de poeira flutuavam ao seu redor.
Ele me destinou um sorriso que nunca mais escapou da minha memória. Estive a ponto de arrebentar em centenas de moléculas quando o abracei. Era Miguel que estava embaixo dos meus lábios e toque.
Deus esteve observando como o amei naquele dia.
XVI
Os lábios de Miguel eram a coisa mais macia e quente com a qual eu já entrara em contato alguma vez. A forma dos seus lábios era simples, harmônica e ainda masculina. Se além dos seus olhos negros, grandes e pesados - olhos que me empurravam a um lugar interno que era só meu para descansar debaixo da luz que irradiavam - os lábios eram a pedra que continha o magnetismo que me atraía para a beirada de um precipício.
XVII
25 de Dezembro de 1963
Eu mataria o pai de Miguel e nós fugiríamos juntos para qualquer lugar do país. Uma cidadezinha perdida no Sul nos era suficiente.
XVIII
O problema da mente adolescente é ser inocente ao pensar que tudo é possível. E a única forma de se aprender que há impossibilidades é sofrer alguma pancada nessa vida.
Eu acreditava piamente que iria dar tudo certo ao livrar meu amigo do carma que era seu pai. Já era a quarta vez que eu o via machucado fisicamente. Outro problema que parecia segurar as mãos dos que eu já tinha, eram meus pais. Não que eu pensava em livrar-me deles.
Desde que, perdão, desde que não me afastem verdadeiramente de Miguel.
XIX
28 de Março de 1964
Era a primeira vez que eu entrava na casa de Miguel e me assustei com o seu tamanho. Era maior do que a minha, pintada de branco e possuía um jardim de roseiras na frente. Parecia tudo muito impecável e bem cuidado. Nada que me pudesse dizer que havia um bruto dormindo num dos quartos.
Miguel perdera a mãe no dia em que ele veio ao mundo. E o pai o culpava eternamente pela morte da mulher, o vivia atormentando com uma carga que suas costas não mereciam levar. (Eu só poderia dizer que graças a Deus fora Miguel quem estava vivo. Se ele não existisse, eu também não. Era só... antinatural.)
Entramos na casa. Eu estava trêmulo por segurar um revólver. Por mais que houvéssemos fumado algo para relaxar (e Miguel ter usado seus lábios para extrair a tensão) eu ainda tinha as pernas bambas e o suor acumulava e escorria por cada poro da minha pele.
Iria matar um homem. Um homem que era feito de carne, sangue e célula como eu. Um homem que possuía um coração bombeando sangue a todo segundo, um pulmão em pleno funcionamento... E cada órgão iria morrer com um simples ‘click’.
XX
O combinado era de que Miguel entrasse e fosse distrair o pai enquanto eu o seguia sorrateiramente. Eu iria atirar na cabeça do homem que eu nem conhecia o nome. Tinha que ser rápido. Muito rápido.
Olhei para Miguel uma fração de minutos antes de ele abrir a porta cor magno que o separava do quarto do pai. Um sorriso aflorava calmamente em seu rosto. Devolvi-lhe um sorriso nervoso com o qual ele me respondeu com um gesto de afeto íntimo e cálido.
Uma certeza de que tudo daria certo irradiou em meu organismo. A arma continuava empunhada e aguardei Miguel entrar no cômodo. O homem deveria estar dormindo devido a hora da madrugada. Uma voz grossa bateu em meus ouvidos, um frio insuportável carcomeu a ponta dos meus dedos numa ansiedade inimaginável.
Parecia estar havendo uma conversa calma. Não conseguia entender o que era dito devido os galopes insistentes do meu próprio coração. Esperava Miguel falar a palavrinha mágica para eu irromper no quarto.
Foi a espera mais torturante que eu pude algum dia passar.
XXI
Fora Miguel que conseguira a arma. Dissera que era do pai e já o havia visto limpando-a algumas vezes. Lembro que quando me contou, senti um nó formar-se na garganta. Miguel não tinha medo que o homem o ferisse de alguma forma com a arma? Porque, Deus, eu sim.
XXII
Eu escutei Miguel falar o combinado. E como se tudo transcorresse vagarosamente, minhas pernas cravaram para dentro do quarto. A arma estava em punho e mirei certeiramente para o ser humano a minha frente.
Era a primeira vez que eu via o pai de Miguel. Absorvi suas características rapidamente. Parecia-se com Miguel - os cabelos iguais (a diferença que eram grisalhos), os olhos da mesmíssima cor e expressão apenas diferente pelas rugas. Tremi ainda mais quando vi o puro susto incrustado no seu rosto e corpo. Percebi os ombros rígidos e a boca que se abria para perguntar constantemente ao filho o que significava aquilo. O que significava eu, precisamente.
Miguel pediu que eu atirasse enquanto o homem recuava cada vez mais, estava nervoso e olhando para os lados. Quando ele agarrou um abajur e avançou em direção a Miguel, foi numa quase auto defesa que me pus na frente do meu amigo. Uma mão recobriu a minha e juntos, dois dedos apertaram o gatilho.
XXIII
A palma da minha mão suava incessantemente. O gatilho fizera um mínimo barulho, o impacto da bala sendo cúspida e encontrando seu destino que me fizeram arregalar os olhos. Eu pude escutar a carne da testa do homem se dilacerar, dando passagem ao metal.
O sangue sujara a parede. Escorriam linhas e mais linhas irregulares na superfície do papel de parede azul. O homem ainda cambaleou antes de deixar o corpo tombar no chão. A vertente vermelha não se cansava de escorrer e trilhava a fronte do pai de Miguel, manchando o carpete bege, ganhando vida e encobrindo os olhos que se tornavam vidros.
Miguel continuava com a mão sobre a minha.
XXIV
Tive que correr ao banheiro do quarto. Um líquido ácido atingiu minha boca em demonstração de pavor. Vomitei de tal maneira que minha garganta parecia estar em brasa e carne viva. Houve um peso que assomou em minhas costas e que eu não posso dizer quando se instalara.
XXV
Miguel limpara cuidadosamente toda a superfície da arma e conseguiu encaixá-la na mão do pai. Deveria haver primeiramente suspeitas de suicídio. Ao menos era o que nós dois prevíamos. De qualquer forma, se por via das dúvidas fossem nos culpar, estaríamos a milhares de quilômetros daqui.
29 de Março de 1964
Embarcaríamos num ônibus que sairia às seis da manhã.
XXVI
Miguel escrevera uma carta relatando ao pai que decidira fugir e que estava cansado da vida que levara. Ainda sendo cauteloso com as digitais, amassara o papel na mão do pai borrando o branco em vermelho.
Eu já fizera o mesmo. Havia uma carta em cima da minha cama.
Seriamos mais dois adolescentes que abandonaram o lugarzinho em que viviam.
XXVII
02 de Abril de 1969
Ficamos fora o suficiente para que completássemos a maior idade. Nesse tempo agíamos como dois vagabundos, arrumamos um emprego num minúsculo e podre bar na periferia da metrópole da Região Sul. Era o suficiente para pagar um cubículo e comprar alguma comida. Vivíamos praticamente um do outro e adicionando bebida e droga e qualquer outra coisa que nos fizesse bem. A quantidade de porcaria que era inventada não chegava aos pés do que eu e Miguel usávamos quando mais novos.
Cada noite parávamos em um lugar diferente, com um comprimido em baixo da língua e gritando pela paz.
XXVIII
16 de Maio de 1969
Nesse tempo, enviávamos cartas e mais cartas para nossos pais. Quero dizer - Miguel enviava ao seu falecido e eu aos meus pais. Sempre mudando de correio, escrevendo que estava tudo bem, que trabalhávamos, sentíamos saudades, contando novidades hipócritas - e eu dizendo do fundo do meu coração que amava minha mãe e meu pai.
Miguel sempre escrevia quando estava drogado ou bêbado, cada linha era de uma afetuosidade engraçada.
XXIX
31 de Julho de 1969
Decididamente, fazer amor com Miguel era a melhor coisa que existia no mundo. Ainda mais quando nós estávamos sóbrios e o gosto do meu amigo era puro.
XXX
No dia 23 de Agosto de 1969, um homem havia batido em nossa porta. Vinha a procura de Miguel e eu quase desfalecera de susto. Tive que me segurar na madeira branca da porta quando meus joelhos eram carnes moles. O homem usava um terno cor bege e óculos enormes cobriam os olhos verdes, tinha uma fisionomia dura e determinada que apenas me assolava medo. Deslizei um sorriso para o intruso que sentava na cama que era minha e de Miguel, ele simplesmente respondeu com um acenar com a cabeça.
Eu havia empurrado esse temor para um canto escondido e perdido em minha mente. Agora estava de volta com toda força, cor e vida.
Pedi licença e recorri ao banheiro para vomitar.
XXXI
Apenas na presença de Miguel o homem dissera o quê o levara até nós. Miguel havia herdado a herança dos pais - o homem era um advogado e vinha comunicar ao meu amigo sobre a morte (suicídio) do pai que acontecera há seis anos.
A situação me fez perceber como o sistema judiciário era... Incrível.
XXXII
02 de Outubro de 1969
Miguel recebeu a herança na nossa cidade e a primeira coisa que fizemos foi fazer amor na mancha café que havia no tapete velho e empoeirado do quarto de seu pai.
XXXIII
31 de Dezembro de 1969
"Você se sentiria irritado se eu dissesse que meu pai nunca me bateu?"
Meu amigo havia me dito tal frase em meio a sorrisos com os lábios inchados e fumaça enquanto rodopiava com uma taça na mão. Nós estavamos num quarto de hotel que ele pagara para o fim de ano.
Lembro que alguma guitarra nos brindava estrondosamente na rádio.