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Nov 04, 2009 23:53



Mutualidade

Do que imagina que sobrevive um pobre músico - não propriamente músico; tocava apenas um instrumento: o violino - a não ser de sua música? A única coisa que aprendera na vida, e poderia que o sustento viesse de engraxar sapatos ou a rudeza de outra qualquer profissão que exija calos em delicadas mãos como a sua? Mãos destinadas e feitas com a leveza suficiente para destoar notas melódicas no instrumento esculpido de madeira. Desde pequeno aprendera com o pai e o avó, e se não fosse o trágico destino que sente-se no direito de atuar; a corja da família violinista estaria inteira, tocando por entre os becos e restaurantes, garantindo sustento.
A partícula se indica apenas um caso que poderia ter acontecido se fatores contribuíssem e agissem; e Maurice dava voltas na tristeza pelo fato de tais componentes lhe virarem as costas.
Quando a noite entregava indícios de que no céu era apenas lua, Maurice ia à rua e numa solitária praça punha o violino sob a clavícula e o ombro, escorregava com os dedos por entre as finas cordas - esperando que a melodia pegajosa inundasse os ouvidos do coração de algum pedestre, e esse despejasse uma nota numa caixinha de madeira posta ao lado do pé.
Vivia desta modesta contribuição - com algum esforço pagava o aluguel de um cubículo que emprestava o nome de lar, e o resto da quantia arrecada era distribuída nos vícios. Era um pobre, imundo, vagabundo, a margem da sociedade, vigilante sem salário durante as noites, companheiro de arruaceiros e detentor de habilidosas mãos - sua dádiva. Seu aspecto nubloso acariciado por bolsas vermelhas abaixo dos olhos (pela vida desgovernada que levava: noites regadas de bebedeira e a ressaca durante o dia) levantavam os cochichos da vizinhança no cortiço mesmo que Maurice não levantasse a voz; e se houvesse quem escutasse o tom grave e seco era apenas por um pedido de licença ou um simples obrigado. Taciturno, vagaroso, esquálido, negros cabelos compridos e lisos, olhos da cor do hipnótico breu, profundos e incessantemente úmidos, na pele lhe faltava cor e o corpo sempre coberto por vestes escuras - esse era Maurice.

Foi num desses bares podres onde o álcool e a nicotina grudam e transpiram no ar e pela parede, que Maurice com o pouco do que lhe rendiam as notas saídas do violino - entre um riso, um trago, uma baforada e um gole de pinga - conhecera o sanguessuga que passara a chamar de amigo. Amigo tão necessitado e desvirtuado quanto Maurice, sem eira e nem beira, marcado pela essência da tragédia que carregam os viciados e pobres, a quem Maurice oferecera abrigo no seu cubículo. Um escritor sem sucesso que enfeitava sentimentos num pedaço de papel e dizia-se poeta. E Maurice se apropriava do título, empregando cinicamente um pronome possessivo. Era seu poeta fracassado.
Dois ou três anos mais novo que Maurice, sempre com um sorriso enviesado nos olhos amarelados (verdadeiros potes de mel onde as bordas eram os longos cílios marfim), e nos lábios um verso recém criado que fazia questão de exibir em alta e clara voz. Suas características físicas, desde os seus ondulados e mal cuidados cabelos às mãos eram de uma única cor: o dourado. Tão imprestável quanto um bonito vaso quebrado, Bernardo.

E para este poeta, uma das mais complicadas coisas neste mundo - ao menos em seu próprio e único mundo - era a personalidade do violinista. Por mais que no início aquela solidão que emanava o parceiro lhe rendesse admiração e atração à um ser praticamente sorrateiro e sombrio, vivente somente no escuro da noite; este que parecia esconder e soterrar segredos, calúnias e perturbação. Talvez fosse exatamente isso que precisara no início - quando com seu olhar de menino perdido e curioso encontrara um homem solitário e rodeado pelo nada, de pálpebras fechadas e dedilhando um instrumento de madeira na luz da lua. Era deveras encantador! Quantas de suas pobres rimas àquele não foram desperdiçadas, com a ínfima idéia de então algum dia ter-lhe próximos os olhos! (Com certa sorte, a impecável linha traçada no destino de ambos - coisa de poeta sensível e enamorado, o adorado violinista estava no mesmo recinto que Bernardo; talvez pela embriaguez que tornava este rapaz falador, enviou o crucial convite do início de uma amizade.)
E com o passar da convivência, descobrira que Maurice podia passar dias sem realmente querer-lhe para uma conversa, sem querer qualquer tipo de contato - preso num mundo subterrâneo que Bernardo não conseguia e nem podia entrar. Então a fadiga costumeira que começa a nascer e interpelar castigava o pobre poeta; repensava se simplesmente tudo que sentia não passava de um platonismo... Até Maurice vir na escuridão, arrastando os pés nus no chão frio, com um sorriso nos lábios secos. Aí, as rimas que antes pensava estarem perdidas voltavam com fervor em sua língua.

Poetas, na concepção de Maurice, eram aqueles que podiam transcrever sentimentos no papel com rima rica e clássica, e acima de tudo, eram conhecidos. Nunca enganara ao amigo: faltava-lhe tudo que era necessário para que pudesse ser chamado de poeta. (E mesmo assim, Maurice insistia em chamá-lo.) Reconhecia que o companheiro não possuía os míseros requisitos para ser considerado um bom escritor; não respeitava a métrica e o estilo necessário, faltava-lhe congruência, perdiam-se sons e rimas. Mas Maurice enxergava uma beleza indiscutível, cega e bêbada naqueles simples rascunhos. Ele, por muitas e muitas vezes, vivia a olhar com ar encantado e submisso os lábios de Bernardo enviesando um verso... Sempre nestes momentos, o rapaz se transformava: a face ganhava cor, os olhos ganhavam um tom vivido que transbordava exacerbada paixão, gesticulava com fervor e crença no que fazia; cada palavra que escapulia de sua mente refletia roseamente na palidez de Maurice... E perdia-se então; porque sabia, mesmo que fingisse e perguntasse por idiotice, para quem era toda a tentativa no fracasso. Na verdade, poeta para Maurice, era singular e possuía nome próprio.

O violinista de certa forma sustentava Bernardo. De qualquer forma, nenhum dos dois requeria muito para sobreviver além de um teto, água para uma necessária limpeza física, pão e algo que tapasse o frio durante a madrugada. Raramente, Bernardo aparecia com algum dinheiro em mão e quando o fazia, gastava-o com drogas para ambos. Era o motivo para aparecerem curtas brigas que por muitas vezes eram resolvidas pelo físico; Maurice sempre acabava submisso e castigado, fazendo questão de expor quem pagava as poucas contas. Nestas ocasiões, o auto intitulado poeta sumia por cinco dias a uma semana; quando retornava bêbado e choramingando, despejando uma sequência de desculpas por meio de camuflados versos ao violinista, causando um reboliço e falatório no cortiço. Bernardo voltava então a viver à custa do outro homem no podre cubículo, a dormir no rasgado colchão largado no chão vermelho. Era confortável para Maurice por os pés em casa e saber que alguém também o fazia, ou o fizera e o esperava...

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