O grito

Feb 10, 2005 12:32

É um grito. É mesmo um grito. É um grito no escuro, um rito que se enforma e vai clareando. É um homem e um grito, numa espécie de rito. Há muita gente mas o grito isola-o. E o escuro à volta dele, do grito dele, do alerta dele, da sua revolta ou do seu medo. Grita e ecoa. Já não é um grito, são muitos gritos, são todos os gritos do mundo, não há quem não grite e não há quem não esteja só, isolado no seu grito ou no seu rito.

Os olhos pregados no chão, depois no céu. Os pés inconformados ou talvez só, assustados, movem-se, andam sem parar aos encontrões nos outros gritos. Os olhos raiados, coléricos, depois do grito, narcotizados, aliviados. Gritam, gritam, gritam até se ferirem. Gritam, gritam, gritam até não se fazerem ouvir, até a garganta estar em sangue, até à total rouquidão ou até à cegueira da sua escuridão. O grito é depois, então, um grunhido tão sumido que se torna só seu. Um gemido que jamais poderá ser ouvido.

Gritei-me até me despir, gritei-me tanto que julguei que destruiria a ponte de cristais de sal, erigida sobre o fosso lamacento e movediço das areias do tempo. Julguei que lá cairia, ao invés disso, tudo se solidificou. Já não precisei de gritar, o meu grito tornara-se num canto diatónico, em duas vozes que se erguiam destemidas sobre a calçada fria da cidade. Ao meu lado mais duas vozes e outras duas e outras duas, tantas vozes que os meus ouvidos pudessem alcançar. Todas em uníssono e diatónicas, em coro pela universalidade.
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