AEAEAEAE depois de dois séculos. 8D Não, só mais de um mês. risos.
Então, tive um surto e consegui terminar o capítulo, veja que diver. Espero que não tenha muitos erros, e se estiver faltando a letra D em certas palavras me avisem, meu teclado me odeia e eu to sem saco nenhum pra revisar agora. =__=
E se eu tiver descrito o tetsu como 'ruivo' em algum momento foi puro erro por estar pensando na outra fic RSRSRS mas acho que isso não aconteceu.
Eu ia botar mais coisa sobre o hyde nesse capítulo, mas deixa. :/ *ruim*
<3
I - Solitary man II - Under the Snow III - Blizzard IV - Dark Light V - Circle of Fear VI - Thoughts
- Doze anos antes -
Um garotinho pálido de cabelos curtos e negros corria em meio às árvores, sozinho, saltando as raízes e as pedras com facilidade. Sabia que seu pai não ficaria feliz se descobrisse que estava indo tão longe sozinho, mas aquilo não importava, sabia se cuidar muito bem. Sentia-se livre sempre que podia passear sozinho pela floresta, sem ninguém para lhe dizer o que fazer, e naquele ritmo logo foi se aproximando da orla. As árvores agora eram mais separadas e podia ver as casas da cidade mais à frente, mas não iria parar. Pensava em dar uma olhada por lá pelo menos uma vez, já que sabia como se esconder e seu tamanho facilitava tudo.
Parou junto a uma das últimas árvores, via apenas o branco e as casas à sua frente. Sorriu, satisfeito consigo mesmo. Tirou a capa vermelha que usava e virou-a do avesso, vestindo-a novamente. O tom acinzentado do tecido o esconderia melhor no meio da neve. Deu alguns passos à frente e mergulhou metade de seu corpo na neve, logo acostumando-se com os movimentos limitados, mas parou quando seus olhos escuros captaram movimento adiante.
Duas crianças corriam, dois garotos de casacos azuis. Um deles mais alto e o outro ele calculava ter mais ou menos a sua altura, corriam um atrás do outro na neve, e o maior sempre vencia. Ficou observando os dois em silêncio, sem ser percebido, e desejou que as outras crianças da tribo fossem assim. Queria que pudessem brincar na neve também, mas era impossível.
De repente o mais alto correu para a cidade, provavelmente alguém os teria chamado. Mas o outro ficou para trás por mais algum tempo. Por alguma razão, abriu caminho na neve e aproximou-se mais, tentando vê-lo melhor. Tinha cabelos pretos e curtos como os seus, e parecia estar amarrando as botas de neve nos pés. Ele era um pouco orelhudo, o que o fez rir baixinho, e tinha o aspecto de uma criança desajeitada.
Um chamado de uma voz feminina soôu ao longe, e o menino se levantou para responder com um alto "Já vou!", e nisso seus olhares se encontraram. O menino parecia surpreso, mas não o olhava com desconfiança como sabia que as pessoas da cidade fariam. O olhava com curiosidade.
- Quem é você? - ele perguntou alto o suficiente para que apenas ele ouvisse, e deu um passo em sua direção. Ele queria conversar com o menino da cidade, mas não podia, e recuou. O outro franziu o cenho com seu gesto e passou a andar em sua direção, seus passos mais rápidos. - Não quer descer e brincar? - ele perguntou.
Virou-se e correu de volta para a floresta. Correu o máximo que podia, por vezes quase tropeçando nas raízes das árvores, e por alguma estranha razão sentiu vontade de chorar. Quando já estava longe o suficiente, mas não muito próximo de casa, tirou a capa e virou-a para o lado certo, voltando a vestir o tecido vermelho vivo sobre o corpo. Sentou-se no chão, encostando o corpo a uma árvore grande, e fechou os olhos. Tinha um pressentimento ruim. Sabia que era muito pequeno, mas alguma coisa estava começando, e precisava estar preparado para quando tudo explodisse. Precisava fazer alguma coisa.
Queria saber quem era aquele menino, queria conversar com ele, brincar com ele, mas existia algo mais importante. Primeiro precisava proteger aquele menino, e todos os outros.
- Hideto! - ouviu a voz de seu pai, e o enxergou vindo pela direita, um homem baixo de capa vermelha e cabelos pretos empurrando os galhos das árvores, com um ar impaciente - Te procurei por todos os lados! - ele se aproximou e ajoelhou-se ao seu lado, pousando a mão sobre seu ombro pequeno - Os meninos foram maus com você de novo?
- Não. - respondeu baixo - Só queria ficar sozinho.
Seu pai suspirou.
- Mas crianças não devem andar sozinhas na floresta. - dito isso ele o pegou no colo rapidamente, e o menino apoiou as mãos no ombro do pai.
- Quero jogar shougi.
Seu pai riu, e foi andando.
- Vamos jogar quando terminar meu turno.
- Três dias depois do ataque -
Seus olhos se abriram lentamente, e ele viu um teto azul embaçado. Um teto azul de um local mal iluminado por uma luz quente e fraca que vinha de algum lugar fora de seu campo de visão. Sentia que estava coberto por uma colcha ou algo semelhante, sem suas botas e sem seu gorro, deitado numa cama macia e espaçosa. Só então sua visão começou a entrar em foco, e viu alguém ao seu lado, sentado sobre a cama, próximo a seus pés.
Tetsu tinha um olhar cansado e preocupado, e parecia estar conversando com alguém. Virando um pouco o rosto, Hyde percebeu onde estava. O quarto de Ken era identificável pelas cores e pelos pôsteres. Próxima à porta estava uma grande poltrona azul e fofa, forrada com roupas do Kitamura, e sobre elas Miya estava sentado, conversando baixo com o Ogawa. Esfregou os olhos, e então recebeu o olhar do Yaguchi, logo seguido pelo Ogawa. E assim lembrou-se do que havia acontecido. Estavam ajudando nos reparos pela cidade quando havia desmaiado...
- Não voe em cima dele de novo, Tetsu, vai acabar matando o coitado. - Miya se apressou em dizer, parecendo divertir-se um pouco com a situação, e Hyde ficou imaginando o que teria acontecido depois de ter apagado totalmente. - Eu vou avisar que ele acordou.
E com essas palavras o baixinho deixou o quarto, deixando a porta aberta para o corredor escuro. Só percebeu o quanto Tetsu havia se aproximado, quando sentiu a mão dele em sua testa. Ele tinha um olhar cansado, mas calmo.
- Eu falei que trabalhar tanto ia fazer mal até pra você. - ele murmurou, afastando a mão e continuando a observá-lo - Tudo bem?
- Não sei ainda. - Hyde se moveu preguiçosamente, sentando-se - O que houve?
- Você desmaiou, e te trouxemos pra cá. - ele parecia estar se contendo, mas de repente o olhou nos olhos e começou a falar com um certo nervosismo - Por que você não quis escutar quando eu pedi pra parar e descansar?
- Porque você não pediu, você mandou. - o menor respondeu simplesmente, e viu o olhar surpreso do outro - Eu não costumo seguir ordens de ninguém, Te-chan.
- Então nós vamos precisar entrar num consenso... Porque eu sou um pouco mandão...
- Eu já notei. - e notava também que Tetsu parecia envergonhado naquele momento - Mas tudo bem. Eu fui cabeça-dura também, e vou te ouvir da próxima vez.
- E o que importa é que agora você pode se vestir e comer alguma coisa, e vai melhorar. A mãe do Ken-chan está fazendo algo pra todo mundo na cozinha.
Naquele momento Hyde tomou consciência de ainda estar usando apenas calça e meias.
- Eu teria vestido você. - Tetsu recomeçou, e foi observado com curiosidade - Mas eles já me estranharam o suficiente por ter reagido meio... superprotetor demais quando você caiu.
- Tudo bem, eu não sinto frio. - Hyde sorriu, imaginando a cena que o Ogawa devia ter feito. - Que horas são?
- Quase oito da noite.
Miya agora se sentava num dos sofás, a um canto, apoiava o cotovelo direito por alí e então deixava o rosto sobre sua mão. Acontecia um fenômeno estranho àquela altura. Todos pareciam aliviados ao ouvir que Hyde estava acordado e bem. E por alguma razão Miya sorria discretamente com aquilo. Nenhum deles se importava com Hyde antes, nem ele mesmo, e imaginava se sentiam-se da mesma forma que ele naquele momento. Isso porque sentia-se de certa forma envergonhado por nunca ter dado a devida atenção a ele. Quando Tetsu passou a fazer com que se vissem com freqüência, conversassem e se divertissem, muita coisa havia começado a mudar.
Agora pegava-se pensando que nem ao menos sabia por que não se importava com ele antes. Não que Miya fosse comunicativo ou demonstrasse qualquer coisa pelos outros o tempo todo, como Yukke ou Ken, mas realmente nunca havia parado para pensar se Hyde seria uma pessoa legal. Para ele, Hyde sempre fora apenas o garoto estranho que subia os montes de gelo quase nu e andava com os cachorros. E sentia remorso por pensar assim.
Ken entrou em seu campo de visão de repente, sentando-se no sofá oposto e largando-se lá como se estivesse muito cansado. De alguma maneira sabia que ele se sentia da mesma forma. Conhecia bem o Kitamura, podia ver nos olhos dele que ele começava a se arrepender de algumas coisas.
- Então... - o mais alto começou, e Miya pousou seu olhar sobre ele - Que bom que o baixinho está bem, né.
- É. Pensei que ele ia precisar de um médico, além de quase ter infartado o Tetsu. - respondeu calmamente, e Ken riu. Teve uma sensação estranha com aquela risada tão sincera e descontraída. Sentia-se mais tranquilo e relaxado. Resolveu ignorar e prestar atenção ao que o Kitamura pudesse dizer.
- Ei, você não acha que tem algo estranho...?
- Estranho como, Ken-chan? - não sabia por que estava fazendo aquela pergunta. Sabia o que o Kitamura diria, e não queria incentivar aquela conversa.
- O Tetsu e o Hyde. - Ken sentou-se melhor no sofá, mirando-o - Não sei. O Hyde sempre fugiu de tudo e todos, sempre evitou tanto estar perto de nós, que depois de algumas tentativas nós desistimos. E agora o Tetsu chega, e de repente os dois não se largam mais...
- Não fale como se nós tivéssemos realmente tentado nos aproximar do Hyde, Ken-chan. Nós nunca fizemos muita questão também. Sempre foi mais fácil fazer o que todo mundo fazia.
- O que todo mundo fazia...?
- Ignorar. - notou que Ken baixava o olhar, e sentiu-se feliz ao ver que ele também mudava de opinião - O que o Tetsu fez foi não se importar com o quanto ele pode ser estranho, e tentar ser amigo dele. E funcionou. - com um certo alívio, o Yaguchi percebeu a chegada de Yukihiro na sala. Realmente, não queria alimentar as fofocas internas do Kitamura, ele conseguia ser pior que as garotas.
- Yukkie! - Ken exclamou, divertido, erguendo os braços no ar. E o Awaji sorriu, sentando-se ao lado dele.
- Fui dar uma olhada no Hyde. - ele disse, e Miya se conteve para não deixar transparecer seu desagrado quando o interesse ficou evidente nos olhos do Kitamura - Está pálido ainda, mas parece melhor. Sua mãe foi levar um chocolate quente, pra ele não morrer antes de jantar. - finalizou, mirando o rapaz ao seu lado.
- Bom. Parece que vimos o garoto das neves perder a pose pela primeira vez... - Ken comentou, com um sorriso de canto, e Miya revirou os olhos.
- Por essas e outras ele nunca se sentiu à vontade perto de nós.
- Ah, pode parar. - disse Sakura, juntando-se a eles na sala - O Hyde não é só uma criaturinha sensível que nós excluímos.
- Eu não acredito que essa discussão está acontecendo. - Yukihiro resmungou, deixando um suspiro impaciente escapar.
E o estrondo de metal batendo contra metal e contra o chão foi ouvido e soou por toda a rua, ecoando na noite parada da cidadezinha. O silêncio envolveu a casa toda de uma só vez, e Miya e Ken levantaram-se imediatamente. O menor correu até a janela mais próxima, ao lado da estante da televisão, e não havia nada na rua. Nem uma simples alma viva. Ken e Yukihiro correram até outra janela, e Sakura voltou pela casa, provavelmente dirigindo-se até a cozinha onde estavam Satochi e a mãe do Kitamura. Quando estava prestes a fazer algum comentário sobre o susto desnecessário, Miya viu algo ao longe, no fim da rua. Apertou os olhos e tentou enxergar melhor.
Em dois segundos uma grande mancha negra passou pela janela, fazendo Miya saltar para trás com o susto, e o próximo som que ecoou pela rua foi o da cerca do quintal dos Kitamura se partindo.
- Um dos lobos! - exclamou, e rapidamente puxou a cortina, cobrindo aquela janela.
Ken saltou para cobrir a outra janela enquanto Yukihiro arrastava a mesa para bloquear a porta, e Miya correu para o corredor sem pensar duas vezes, imaginando que Tetsu pudesse não ter entendido o que estava acontecendo. Correu, e quando adentrou o quarto, pensou que seus olhos poderiam saltar das órbitas como nos desenhos animados. Tetsu se afastou de Hyde imediatamente, num movimento até brusco e numa velocidade enorme. Mas não tinha tempo para prestar atenção ao rosto corado do Ogawa ou ao outro agora novamente escondido sob o cobertor, não tinha tempo para raciocinar e chegar à conclusão de ter ou não ter visto mesmo os dois colados pela boca há dois segundos atrás. Andou rapidamente até a grande janela na parede oposta, entrou por trás da cama, e fechou as persianas o mais rápido que pôde, puxando as cortinas azul-escuras logo depois. Hyde saltou da cama na mesma hora.
- Eles voltaram. - disse Miya, seus olhos se revezando entre os dois jovens à sua frente.
De repente rosnados altos e passos rápidos cortaram o silêncio que se seguiu à frase do Yaguchi. Sabiam que mais de um dos animais havia acabado de passar em frente àquela janela, e a sensação que se instalou não foi nada confortável. Hyde calçou as botas pesadas que estavam aos pés da cama e vestiu o gorro, e planejava sair do quarto quando Tetsu o segurou com força pelo braço, puxando-o de volta.
- Desculpa ser mandão de novo, mas se você pensa em sair lá fora, eu acho melhor não.
- Desculpa te contrariar, Tetsu, mas nós vamos ter que sair pra ajudar. - disse Ken, agora à porta do quarto, com um rifle de caça em mãos - Você sabe atirar?
- Eu? - o Ogawa olhou surpreso para o maior - Não...
- Então você fica aqui, o Hyde e o Miya vão comigo lá pra fora.
- Mas vocês não costumavam se esconder...?
- Não quando aquelas coisas começam a quebrar janelas e entrar nas casas. - Ken disse apenas isso e saiu pelo corredor, Miya correndo atrás dele. E Hyde fez uma certa força para se livrar do Ogawa, mas ele insistia em segurá-lo.
- Te-chan, não me faça ser estúpido com você... - o menor começou a falar nervosamente, mas parou quando Tetsu o beijou na testa e o soltou.
- Se você aparecer aqui todo mordido depois, vai escutar um monte.
Hyde lhe sorriu e saiu rapidamente do quarto, pôde ouvir os passos dele no corredor. Sentou-se na cama novamente e mergulhou o rosto nas mãos. O som da porta da frente batendo fez eco na casa, e logo a mãe do Kitamura apareceu preocupada na porta do quarto, dizendo-lhe que poderia ficar à vontade e assistir televisão ou fazer qualquer outra coisa que desejasse para se distrair. Tetsu sorriu e agradeceu a gentileza, e ela voltou à cozinha para terminar o que estava fazendo. Mas não conseguiria assistir televisão naquele momento.
Cinco minutos depois, ouvia a gritaria, tiros, rosnados, toda a confusão lá fora, mas não conseguia enxergar nada pelas frestas na janela do quarto, tudo deserto naquele lado. Levantou-se e foi até a sala, olhando em uma janela de cada vez, afastando as cortinas para espiar, e começou a enxergar a confusão instaurada nas ruas. Lampiões e tochas acesos nas casas, homens de vermelho correndo, lobos saltando em homens armados... e nada de Hyde ou dos outros. Imaginava como a mãe do Kitamura conseguia cozinhar numa hora daquelas. Talvez fosse o costume.
Mas ele nunca se acostumaria com aquilo. Não conseguia parar de imaginar uma cena em que um daqueles lobos saltava sobre Hyde, ou sobre Ken, ou qualquer um dos outros. Fechou os olhos e sentou-se ali mesmo no chão, próximo à estante da televisão e à janela, tentando ter pensamentos positivos. Pena que todo o barulho não o ajudasse.
- Onde foi aquele idiota do Hyde? - Ken perguntou, exasperado, correndo com o pesado rifle em mãos.
- O último que viu foi você. - respondeu Yukihiro, segurando uma arma idêntica, correndo à frente dele. Os dois seguiam pisando fundo na neve, passando escondidos pelos fundos da casa de Ali, próximos à farmácia. Alí havia pouquíssima luz, mas era o caminho mais curto. Sabiam que os homens que controlavam os lobos estavam perto da enfermaria fazendo algo enquanto os lobos distraíam todo mundo perto da prefeitura. Anis os havia visto no caminho para a confusão e os avisara, e agora precisavam entender o que estava acontecendo.
Ken se aborrecia, além de tudo, por Hyde ter simplesmente desaparecido de vista. Assim que saíram da casa ele se recusou a usar um rifle e pegou a faca de caça do cinto do Kitamura, e correu para a rua da prefeitura com Miya em seu encalço. Só queria saber se os dois estariam bem. Chegaram à rua e seguiram, sentindo a neve mais rasa agora, e a casa baixa e extensa da enfermaria entrava na visão dos dois, todas as luzes acesas. E três homens de capas vermelhas reunidos no meio da rua que passava em frente. O Kitamura preparou o rifle enquanto corria e foi mirando, vendo Yukihiro fazer o mesmo à sua frente, mas antes que pudessem mirar os homens, quatro grandes lobos vieram correndo da esquina à frente.
Abriram fogo na mesma hora, derrubando dois deles rapidamente. Foi tempo o suficiente para que aqueles homens tivessem sumido como se nunca houvessem pisado aquela rua, e os outros dois lobos se aproximaram, e pareciam tentar se esquivar dos tiros dos dois. Quando os animais passaram pelos dois e fizeram um completo círculo ao redor deles, tentando confundi-los, eles tiveram certeza de que algo estava realmente fora do lugar.
E não muito longe dali, os lobos ainda espalhavam o caos. Alguns deles já estavam mortos pelas ruas, mas no mínimo outros quinze continuavam correndo e quebrando cercas, atacando as pessoas que tentavam proteger suas casas. O açougue e duas casas haviam sido invadidos, e algumas pessoas estavam gravemente feridas, no mínimo três mortos, e mesmo assim Miya continuava atirando. Estava seguro no topo de uma árvore, pelo menos por algum tempo, e tentava mirar a cabeça dos lobos. Já havia matado quatro, calculava que dessa vez conseguiriam vencê-los antes que batessem em retirada por algum outro motivo. Seria a primeira vez, e talvez porque agora estavam preparados, depois das mortes de dois dias atrás. Mas Miya percebia que alguns dos lobos pareciam estranhos, e não conseguia atingi-los com facilidade. Era como se fossem mais inteligentes que lobos normais, e eram justamente esses que haviam invadido as casas e matado as pessoas.
Aquela confusão toda por si só já era um desafio muito grande para sua mira, aldeões atirando com espingardas, atacando com enxadas, derrubando tochas nos animais, lobos saltando, correndo, quebrando cercas... E de repente no meio daquilo tudo conseguiu ver Hyde, e sentiu-se aliviado. Ele estava sobre o telhado do açougue, no outro lado da rua, logo à sua frente, e olhava para baixo examinando a cena.
E Hyde sabia onde o Yaguchi estava, e sentia-se melhor sabendo que pelo menos uma pessoa não atiraria nele por descuido. Seus pés escorregavam um pouco na neve do telhado, mas ele mantinha o equilíbrio e observava. Sabia exatamente o que havia com aqueles lobos, e achava isso sádico e doente demais até para aquele povo... Mas também sabia que lobos nunca deixavam de ser lobos, não importando o que estivesse nos corpos deles. O instinto era mais forte em situações extremas, sempre. E os lobos negros eram sempre treinados para seguir um líder de alcatéia cegamente. Já vira aquele filme antes, quando era mais novo, se o líder morresse eles ficariam desorientados e deixariam de atacar tão bem e ordenadamente, talvez alguns até fugissem.
Só precisava descobrir qual deles era o líder.
O velho da padaria parou para recarregar a arma lá embaixo, e Hyde entrou em estado de alerta no mesmo instante. Mas o lobo foi mais rápido que ele, saído de trás de algumas latas de lixo jogadas no meio da rua, e estava a um instante de enterrar os dentes no braço do velho quando Miya conseguiu outro tiro certeiro. O impacto do tiro fez o animal girar no ar e cair torto aos pés do homem, manchando mais ainda a neve de vermelho. E naquele momento um dos lobos soltou um uivo alto, ao que os outros se espalharam mais pela rua, alguns se escondendo nas árvores. Hyde o avistou e o seguiu com o olhar. Todos os lobos tinham pelo menos algum ferimento, menos aquele. Anis e Ali tentavam acertá-lo com os rifles, mas ele sumia entre as árvores e casas e saía em algum lugar mais seguro, onde os homens estavam mais preocupados com os outros lobos. Hyde o observou fazer isso umas três vezes, e os dois jovens demoravam a alcançá-lo, logo acabariam atacados por ele ou pelos outros.
Satochi lutava com um dos lobos com uma grande tora de lenha em chamas nas mãos, e Sakura era o responsável por derrubar lampiões e tochas pela rua, assustando os animais. Se não fosse por isso, muitos outros já estariam mortos.
Então o momento de sorte que Hyde aguardava chegou. Anis e Ali abriram fogo contra o líder novamente, mas ele correu para a área de árvores logo ao lado do açougue, e Hyde correu pelo telhado sem perder tempo. Chegando à beira das telhas, avistou o lobo lá embaixo e saltou acompanhando o movimento dele. Conseguiu cair sobre o animal, mas ele não havia caído com seu peso. Era muito forte, então Hyde precisou se segurar com força ao pescoço dele enquanto ele tentava se livrar. Ainda tinha a faca de caça do Kitamura em sua mão direita, e enterrou-a com toda a sua força no pescoço do lobo negro, num golpe só.
Miya perdeu o tiro e quase acertou Sakura quando ouviu o ganido alto e desesperado do lobo. Sempre se arrepiava com essas coisas.
Anis e Ali chegaram até o mato atrás do açougue e pararam de correr, exaustos, quando avistaram Hyde sobre o animal morto, retirando a faca de caça do pescoço dele. O baixinho se levantou coberto de vermelho, limpando o sangue do rosto com a mão livre, e apoiou as costas na parede do estabelecimento. A inteligência era humana, mas o instinto ainda era de um lobo. Sorriu ao pensar nas falhas do plano de terror daquela noite, mas ao mesmo tempo imaginou por que haviam mandado muito menos lobos. Talvez achassem que aquilo seria o suficiente.
Que bom que estavam enganados.
- Hyde? - Anis se aproximou, baixando o rifle e soltando um suspiro - Quanto heroísmo pra matar só um deles...
- Mas não precisam se preocupar tanto agora. - o baixinho disse, limpando a faca nas calças - Sem esse aqui os outros não são grande coisa.
Ao mesmo tempo ouviram gritos, e pareciam comemorações.
Ken andava pela casa só de cueca, o que arrancava protestos de sua mãe e risos dos amigos, e tinha uma perna cheia de bandagens e enfaixada. Mal acreditava que era meia-noite e a confusão estava resolvida, as pessoas estavam dentro de suas casas enquanto os guardas recolhiam os corpos dos lobos e isolavam os locais onde pessoas haviam morrido, e não havia o menor barulho. A grande lareira da sala fazia com que não sentisse frio ao se sentar no sofá ao lado de um Yukihiro bastante arranhado e cheio de curativos pelos braços, e relaxava apesar de ainda sentir dor. Satochi havia ido para casa, Anis e Ali também, e Sakura se encontrava sentado no outro sofá, o mais próximo da janela, enquanto a mãe do Kitamura cuidava de uma queimadura que ele havia feito no braço.
Tetsu e Miya estavam ao lado dele, o mais alto ainda assustado com tudo e o Yaguchi esfregando as têmporas. Os sons de todos os tiros, mas principalmente os da sua própria arma e os da espingarda de dois canos da esposa do dono do açougue, ainda ecoavam em seus ouvidos, e ele achava que teria uma dor de cabeça por duas semanas. Já Tetsu estava preocupado. Sabia que todos ali já estavam bem, mas continuava preocupado.
Hyde não havia sofrido sequer um arranhão, mas parecera estranho ao voltar, e agora estava tomando um banho. Ele havia ficado sem jeito quando o Kitamura lhe ofereceu roupas emprestadas e insistiu para que tomasse um banho por ali mesmo e se livrasse do sangue, mas no fim acabou aceitando. Tetsu queria que ele saísse logo daquele banheiro e lhe contasse direito o que tinha feito. Os outros contaram umas três vezes, mas Hyde só era citado depois da confusão toda.
E o baixinho deixava a água quente se chocar contra sua cabeça, distraído. Pensava no ocorrido, pensava nas pessoas mortas, nos animais, nas coisas quebradas pela cidade... no Ogawa que devia estar preocupado... e pensava em como era estranha a sensação de tomar banho num chuveiro. Passara a vida toda muito satisfeito com a velha banheira que tinha... e que precisava de meia hora para aquecer. Girou os olhos. Não era hora de pensar nas comodidades de um chuveiro elétrico. Suspirou. Fechou o registro e saiu do box escuro, pegando a toalha que estava sobre o balcão e secando-se rapidamente. Olhava com descrença para as roupas do Kitamura, sabendo que ficariam enormes e que pareceria um palhaço usando-as, mas acabou soltando um riso cansado. Vestiu as calças negras e constatou que sobravam uns três palmos de tecido. Dobrou-as pacientemente e calçou as meias cinzentas que ele havia lhe emprestado também, e em seguida calçou suas botas. Vestiu a camiseta azul comprida, e precisou de algum tempo dobrando as mangas também, e se pôs a amarrar os cadarços das botas. Ouviu batidas na porta, e uma voz familiar que perguntava se estava tudo bem.
- Entra. - disse simplesmente.
- QUÊ?
- Tetsu, eu estou vestido. - replicou num tom aborrecido, e viu uma fresta da porta se abrir. Logo o Ogawa entrou, coçando a cabeça um tanto sem jeito, e encostou a porta novamente.
- Tudo bem com você?
- Tudo sim, Te-chan. - disse, suspirando - Só preciso dormir, e logo.
- Ah, que bom. - Hyde olhou nos olhos dele e percebeu que estava realmente preocupado. O Ogawa sorriu para ele, e o menor acabou sorrindo também, terminando a tarefa com os cadarços. - Os outros falaram alguma coisa sobre você ter salvado a pele de todo mundo...
- Foi exagero deles. Eu só matei o líder da alcatéia, se eles não estivessem lá também tudo teria acabado muito mal.
- Eu sei, mas isso não impede que eu sinta um certo orgulho de você. - Tetsu pegou a toalha jogada sobre o balcão e passou a secar os cabelos do baixinho. - Ken-chan disse que o Miya disse que o Anis disse que você pulou do telhado em cima do lobo e matou ele com uma faca...
- Quem disse o quê? - Hyde ria, e Tetsu o acompanhava.
- Bom, não importa. Você vai descansar bem hoje, vai dormir lá em casa.
- Vou? - o menor parecia surpreso.
- Vai. Nós vamos daqui a pouco, antes que minha mãe morra de preocupação, e daí nós também lavamos as suas roupas lá.
Dito isso o Ogawa pendurou a toalha junto com as outras que estavam por ali, e Hyde juntou suas calças e meias no chão, dobrando-as. Pegou também seu gorro e colocou tudo numa sacola que o Kitamura havia lhe dado. Assim os dois saíram do banheiro, e Hyde não poderia ter ficado mais surpreso quando chegaram à sala e todos comemoraram. Era a primeira vez que era recebido daquela forma, e ficou atônito quando um Ken que vestia apenas bandagens e uma cueca preta saltou do sofá e bagunçou seus cabelos já desarrumados. Yukihiro o mirava com um misto de satisfação e cansaço, Sakura ria do Kitamura, e Miya parecia feliz apesar da perceptível dor de cabeça.
Apesar a insistência da mãe do Kitamura para que ficassem e comessem mais alguma coisa, os dois saíram para as ruas novamente após despedirem-se de todos. O vento estava ameno e ainda havia vários guardas nas ruas, então se sentiram seguros para caminhar tranquilamente. Subiram a rua, que também estava virada e cheia de entulho e sangue, mas deserta, em direção à casa do Ogawa.
- Espero que o Sakura-san não perca o emprego. - Tetsu disse de repente, e Hyde pensou com pesar no senhor açougueiro, chefe do Yasunori. Os lobos o haviam matado quando invadiram o local, sua esposa não conseguira atirar neles a tempo.
Trocaram poucas palavras pelo caminho, e ao chegarem em casa a mãe do Ogawa os recebeu com abraços, beijos, e milhares de perguntas. Depois de responderem a um interrogatório, serem esmagados e praticamente forçados a comerem alguma coisinha, os dois se encontravam no quarto de Tetsu.
- Quer um pijama? - o Ogawa perguntou, procurando meias no armário, pisando na segunda cama que sua mãe havia feito com um colchão no chão - Eu tenho vários.
- Não, obrigado.
- Vai dormir com as roupas do Ken-chan? - Hyde apenas afirmou, parecendo perdido em pensamentos, sentado sobre a cama do rapaz. Tetsu sorriu, já vestindo um pijama amarelo estampado. - Então tudo bem.
Encontrou as meias que procurava e calçou-as, agora sentado ao lado do menor. Hyde se levantou preguiçosamente e esticou os braços.
- Eu durmo no chão. - ele disse, e deu um passo, mas Tetsu o segurou pela cintura e o puxou de volta, fazendo com que caísse meio deitado sobre a cama. Riu quando ele o mirou interrogativamente.
- Você dorme comigo.
- Sua mãe não vai incomodar se entrar aqui...?
- Mesmo se ela fosse chata assim, eu tranquei a porta. - Hyde ergueu uma sobrancelha, e o maior sentiu seu rosto corar - Eu sempre faço isso quando vou dormir ok, mesmo quando estou sozinho.
- Se você diz.
- Vamos dormir logo.
Hyde escondeu o sorriso em seu rosto enquanto Tetsu pegava o travesseiro que sua mãe havia deixado sobre o colchão e o colocava ao lado do outro na cama, deitando-se antes dele. Quando o Ogawa andou até a porta e apagou a luz, apenas um risco da luz da lua que entrava pela cortina permitia que se visse algo. Deitou-se ao lado do menor, cobrindo-se junto dele, e logo sentiu o abraço dele em seu corpo. Sorriu e retribuiu o abraço, sentindo a respiração lenta e cansada dele em seu pescoço. Imaginou o quanto aquilo tudo deveria ter sido estressante. Surpreendeu-se quando ele se moveu e deixou um selinho em seus lábios antes de aninhar-se em seu corpo completamente. Mas apenas relaxou e mergulhou seus dedos naqueles cabelos negros e ainda um pouco úmidos antes de fechar os olhos. Também precisava muito de uma boa noite de sono.
- Boa noite, Miya-chan. - Ken disse, e ouviu uma resposta baixíssima do Yaguchi.
Miya encontrava-se deitado na cama do Kitamura, suas costas nas costas dele, e Sakura e Yukihiro dividindo um enorme colchão aos pés da cama, já adormecidos. Embora estivesse muito cansado, não sabia se conseguiria dormir muito cedo. A dor de cabeça ainda era aguda, e além de tudo aquilo ainda pensava na cena que havia visto ali naquele mesmo quarto. Pensava naqueles dois, e não conseguia dormir. Ouvia o Kitamura resmungando enquanto dormia ao seu lado, e não conseguia dormir. Começava a pensar em tantas coisas que preferia nunca ter visto aquela cena. Nunca. Seria mais fácil se não tivesse visto.
-continua-
...como estamos indo? çç